Da
ironia sutil ao verbo direto
* Por Amilcar Neves
Bem que o Flávio sempre me advertiu: ironia e sutileza não cabem na
crônica de jornal, o leitor não percebe a insinuação e lê o que está escrito,
não as entrelinhas. E a culpa nem é do leitor, mas do fato de estar lendo
jornal, veículo de matérias diretas, objetivas e precisas. É assim que ele lê o
jornal, é assim que lerá a crônica do jornal. A digressão, a sugestão, a
provocação caem melhor no texto literário, que o leitor aprecia como um
desafio, uma charada, um enigma a ser solucionado.
O risco de ser sutil e irônico na crônica jornalística, conclui o
Flávio, é ser entendido e interpretado erroneamente (do ponto de vista do
autor) pelo leitor, que já tem um olho na parte de baixo da página e ainda nem
chegou propriamente a desgrudar o outro olho da página anterior: há que ler
rápido, fast read, porque o
tempo urge e sempre está na hora de voltar, de fazer o que realmente te dá
camisa. E o Flávio José Cardozo, sabemos todos, é dos mais brilhantes cronistas
que jamais brotou em terras catarinas. Além de construir-se em contista dos
mais importantes que o Brasil já deu.
Pois tal é o mal que me aflige desde que, sutil, tentei ironizar alguns
absurdos e contrassensos que rolam por aí. Meu problema, minha dúvida atroz e
cruel reside simplesmente em encontrar uma forma eficaz de devolver, por
imerecida, uma torrente de elogios que recebi quando tratei aqui, outro dia, da
efetiva importação de médicos pelo governo federal, da suposta importação de
engenheiros e da fictícia importação de escritores.
Parecia-me que o disparate das argumentações que usei (sem contar a
história que os meus textos vêm contando desde 1963) seria suficiente para
denunciar com clareza o verdadeiro sentido e as reais intenções da crônica em
questão. Aí o erro grotesco do cronista: quem condena a vinda de médicos para
atender as populações marginalizadas, necessitadas, só tem olhos e ouvidos para
o corporativismo grotesco e delinquente, e se escora atrás exatamente de
argumentos disparatados, às vezes sem se aperceber da falsidade do raciocínio.
Assim, o que estes leram aqui foi a música dissonante à qual se acostumaram. E
aplaudiram entusiasticamente o cronista que, supuseram, enfim enxergava a
realidade - deles.
De forma idêntica obram os que denunciam a importação de engenheiros
pelo governo federal - para criticá-lo acidamente -, quando se sabe, apenas
para ficar em um exemplo, que os EUA desenvolveram sua engenharia, ciência e
tecnologia graças à sedução de cérebros de todo o mundo, inclusive da Alemanha
nazista, da União Soviética e do desprezado Terceiro Mundo. Só nós, no Brasil,
com deficiências gritantes nessa área conhecidas há décadas, é que devemos
permanecer puristas, nacionalistas, xenófobos.
Por outro lado, o erro de avaliação cometido pelo cronista gerou iradas
mensagens eletrônicas exigindo a exclusão do endereço do remetente da minha
lista de distribuição, com a afirmação categórica de que, "se é para ler
esse tipo de lixo, prefiro ficar com a Veja inevitável dos consultórios
médicos".
Enfim, como declarou de peito aberto o presidente do Sindicato dos
Médicos de Campinas, apoiando o programa Mais Médicos, "a não ter nem
médico nem estrutura de atendimento à saúde nos cantos desassistidos do Brasil,
é preferível ter ao menos o médico, que acabará se tornando o indutor para a
criação dessa estrutura". Atendendo ao Flávio, o doutor paulista não foi
sutil nem irônico: deu o seu recado de forma direta.
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Amilcar Neves é escritor, com oito livros de ficção publicados, membro da Academia
Catarinense de Letras.
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