Projeto*M
* Por Juarez José Viaro
"Falta de atenção*perda de
produção". FA*PP, este comando estava gravado na memória de
A363 definitivamente. Precisava se concentrar. Toda vez que seus pensamentos
divagavam aleatoriamente, o comando voltava para a tela principal e gerava um
aviso que acendia e apagava na sua frente. Ou estaria gravado em seus
neurônios? Não importava. Esses termos orgânicos, com referência ao seu cérebro
não eram recomendáveis. Melhor usar a linguagem M para não se distrair
novamente e aquele comando aparecer em sua tela.
Sua produção já estava caindo
novamente. Logo receberia mensagem de atenção, que também parecia gravada no
seu próprio cérebro. Mais atenção = mais produção. Sua cabeça então doía e A363
não sabia se era bom ou ruim. Doer era ruim, também gravaram em seu cérebro,
mas um desvio de raciocínio que conseguia fazer, levava à conclusão de que doer
era bom. Por quê? Doer = ruim. Repetia a mensagem. Doer = bom, diziam seus
pensamentos divergentes. Doer = ruim, repetia a Máquina. Doer = bom, já
corrigia seu cérebro.
Sabia que a mensagem da Máquina
traria outra em
seqüência. Suspender *produção. E gerava o arquivo:
Ingerir*cápsula*333B. Sabia que a 333B resolvia imediatamente sua dor de
cabeça, mas insistia em ficar com ela. Doer = bom, repetia seu cérebro e
novamente a mensagem contrária da Máquina. Sabia que todos esses comandos
ficariam gravados e fariam parte do arquivo que a Máquina gerava como relatório
de sua jornada de produção. Não se importava. Ninguém lia mesmo aqueles relatórios.
Só a Máquina. Fazia tempo que todos seus superiores haviam sido eliminados da
produção. Só restava a Máquina. Mas ele duvidava que a Máquina pensasse.
Injúria suprema essa, suspeitar
que a Máquina não fosse capaz de analisar dados, interpretar e opinar. Era esse
o objetivo supremo do Projeto M. Produzir a Máquina Final, que eliminaria os
humanos da produção, do controle da produção e da finalização. Três fases =
três objetivos. Foi o primeiro comando que incutiram em seu cérebro. Tinha medo
de que atingissem logo a terceira fase: a exclusão de humanos. Quando a Máquina
fosse capaz de pensar, os humanos seriam excluídos da produção. Só restava
rezar, lembrou.
Rezar? O que era isso, que estava
gravado no seu cérebro orgânico? Às vezes voltavam à sua mente mensagens,
trechos, pedaços de frases, que não conseguiram apagar. Rezar, não lembrava
mais o significado da palavra. E não adiantaria consultar o Dicionário M. Era
linguagem Pré*M, quer dizer, obsoleta, sem uso, acesso*não*permitido*.
Rendeu-se à insistência da
Máquina e ingeriu a cápsula *333B. Imediatamente uma sensação de bem-estar
percorreu seus neurônios, ou melhor, seus arquivos*operacionais. Mas havia
aumentado seu tempo de resistência ao comando de ingerir cápsula e isso era
bom. Um exercício de resistência. Aos poucos produziria uma camada de proteção
aos comandos, que permitiria sentir a dor por mais tempo, até que pudesse
senti-la sempre que quisesse.
A dor. Sabia que só ele sentia a
dor. Erro*humano, diria o Dicionário M. Tudo que fosse específico dos humanos e
a Máquina não fosse capaz de produzir, gerava arquivo de erro*humano. Era o
caminho para a terceira fase, que ele tanto temia: sua exclusão do processo de
produção. E depois o envio para a área de reprocessamento humano, chamada em linguagem M de
Paraíso*M. Segundo os arquivos do Projeto M, os humanos atingiriam a fase 3, o
retorno ao Paraíso, quando a Máquina executaria todas as tarefas humanas,
restando aos humanos usufruir apenas. Usufruir era seu medo.
Algo em seus arquivos, um pedaço
de memória, se referia a esse estágio inicial dos humanos, onde não havia a
produção, só usufruto. E gerava uma sensação de que não era bom. Mas a Máquina
não permitia sensações divergentes. Usufruto = bom. Era a sensação que
permitia. Por que não haveria de ser bom usufruir apenas, sem produzir? Deixar
para a Máquina as tarefas todas da produção e apenas viver usufruindo? Sairia
da área de produção, voltaria para a área de usufruto. Nem se lembrava mais
como era usufruir. Tanto tempo na produção, esqueceu qual era a sensação de
usufruto. Lembrava da sensação de prazer, mas era proibido pensar em prazer,
logo receberia mensagem de advertência da Máquina: pensar = bom, prazer = ruim.
Continuou pensando. Nem se lembrava qual sensação era prazer. E se insistisse
em lembrar, a dor de cabeça voltaria e teria que novamente suspender a produção
para ingerir *333B.
Melhor não pensar nisso. A363
voltou a se concentrar no serviço que executava. A Máquina registrava seu tempo
de devaneio até a cura de sua dor de cabeça e a volta à produção. Podia receber
mensagem de advertência pela demora em ingerir *333B. Teria que se justificar
para a Máquina. Mas, afinal, quem iria se importar com isso? A Máquina com
certeza apenas registraria mais uma ocorrência para humano nenhum tomar
providência. Era assim já há algum tempo. Os procedimentos a cargo dos humanos
estavam cada vez mais sendo restringidos e sendo substituídos pelos
procedimentos da Máquina. Em breve nada mais seria executado por humanos,
apenas por ela, a Máquina. A363 sentiu novamente um calafrio, não imaginava
como poderia sobreviver depois desse Dia Final quando deixaria a produção e
seria transferido para o Paraíso. Esse era o sonho de todos os humanos, menos
dele. Tinha um pressentimento, uma desconfiança de que não seria mais o mesmo e
não seria feliz usufruindo seu resto de vida sem produzir para a Máquina.
Um aviso sonoro interrompeu esse
pressentimento. Era seu horário de descanso. A363 rapidamente inseriu os
comandos para seu lanche. Em segundos retirou um hambúrguer da processadora de
alimentos e pôs-se a devorá-lo com vontade. Embora sendo o mesmo lanche que
programava todo dia, fazia diariamente um exercício de saboreá-lo com mais
avidez, buscando recuperar a sensação de prazer em comer, que há muito tempo
não sentia mais. Era tudo tão automático que aos poucos tinha se tornado alheio
a essa sensação e esquecido de como era bom morder vagarosamente todos os
ingredientes e sentir seu paladar confortado pela ingestão de algo saboroso.
Mais um aviso sonoro, mas desta
vez a processadora de alimentos avisava que os ingredientes estavam se
esgotando e que necessitava de novos suprimentos. Digitou rapidamente um pedido
à Central de Mantimentos para repor os estoques da processadora de alimentos de
sua Célula Domiciliar. Era o mesmo pedido de sempre, poderia até mesmo
programar para que a processadora repetisse ao infinito seu pedido de
mantimentos, mas preferia ter que fazê-lo sempre, para ter a sensação de
controlar sua alimentação. Em segundos veio a confirmação do pedido e o débito
em sua conta. Por um mês mais não teria que se preocupar com a reposição de
ingredientes para sua alimentação.
Saciada sua fome, voltou a seus
devaneios sobre o futuro. Procurava não se ater às propagandas incutidas em seu
cérebro sobre o Dia Final, quando estaria concluída a Fase 3 e seria enviado ao
Paraíso. Afinal gostava de sua vida como estava. Por mais vazia que fosse,
gostava de ficar em sua célula domiciliar, mesmo levando uma vida solitária.
Mas estava acostumado e toda vez que se sentia só, voltava à produção e evitava
sentir-se triste pela falta de convívio humano.
Há tempo não sabia o que era
outro ser humano para conversar. Suas conversas ora se restringiam a contatos
profissionais, ora conversas virtuais com pessoas de todas as partes do mundo,
mas todas monitoradas. Queria poder ficar com alguém sem o monitoramento da
Máquina, mas sabia que isso era impossível, ou passível de séria advertência.
Com a substituição da Internet pela Omninet, após a última Guerra do Petróleo,
não havia mais a possibilidade de uma rede intermáquinas que não fosse
monitorada pela Máquina. Tudo era controlado, cada frase, cada interjeição
digitada ficava registrada e passível de conhecimento e consulta por todos. A
intimidade e as conversas reservadas não eram mais permitidas, para controle de
possíveis atos de sabotagem e terrorismo, diziam as regras da Omninet.
Aproximou-se da janela e admirou
a paisagem. Do 111º andar podia avistar uma nesga do horizonte longínquo, onde
as torres de células domiciliares começavam a ficar mais baixas, e um pouco de
verde de vegetação aparecia ao fundo. Olhou para o céu e admirou as nuvens que
se formavam. Entre milhares de pontos escuros que representavam os
transportadores aéreos podia ver algumas nuvens brancas vagando vagarosamente
no espaço azul. Queria poder abrir a janela e inspirar o ar exterior
diretamente, mas sabia que era impossível. Todos os procedimentos de selagem de
sua célula domiciliar não permitiam que as janelas fossem abertas. Tinha que se
contentar apenas com a visão daquela paisagem e sonhar com o dia em que pudesse
atravessar todas as torres e poder admirar de perto uma paisagem natural de
vegetação terrestre.
Enquanto isso, contentava-se em
cuidar das plantas artificiais, as únicas permitidas num ambiente interno.
Embora crescessem e dessem flores e até mesmo frutos, não eram plantas naturais
que nascem e morrem, como a vegetação nativa ainda existente. Seus vasos de
plantas duravam a vida toda, não necessitavam de cuidados contra pragas, ou
excesso de água, ou falta. Tudo era regulado automaticamente, para evitar
reparos e decepções. E nem mesmo cresciam em demasia. As plantas
sensoriavam o ambiente em que estavam e se adaptavam em tamanho e extensão ao
espaço disponível para crescer. Bastavam alguns comandos e elas floriam ou
davam frutos, tudo programado. Nada natural. Ou seria isso o 'natural' agora?
A363 deparou-se com esse pensamento. Qual era a natureza onde ele vivia? A
programada pela Máquina, ou aquela distante, que avistava de sua janela?
Divagava sobre isso quando o aviso sonoro alertou para que voltasse à produção.
Era noite na cidade de São Paulo
e A363 observava de sua janela as milhares de janelas iluminadas de Células
Domiciliares. A megacidade expandira-se por todo o vale dos rios Tietê e
Pinheiros, passando por cima deles, agora já submersos em galerias
fluviais, avançava pelas cidades vizinhas e alcançava já o Vale do Rio
Parnaíba, por onde passava o trem-jato interligando a cidade com o Rio de
Janeiro. Era essa a paisagem que via de sua janela voltada para Leste. A mata
do entorno da cidade já havia desaparecido antes mesmo da Guerra do Petróleo.
Restavam apenas poucos trechos de mata em parques da cidade.
A 363 sonhava em um dia morar
longe dessa megacidade, mas restavam poucas opções. As cidades de praia estavam
decadentes depois da elevação dos oceanos e as que restavam tinham poucos
turistas, com medo da radiação cada vez mais intensa após a destruição da
camada de ozônio, acelerado pela Guerra. Muitas dessas cidades, como o Rio de
Janeiro, precisaram derrubar a cadeia de prédios à beira-mar para conter
o avanço das ondas. Outras, como Salvador, tinham virado um arquipélago e era
preciso tomar superlanchas para ir de um bairro a outro. As cidades de campo estavam
caríssimas, só permitidas a poucos privilegiados que pudessem pagar aluguéis
exorbitantes e alto custo de vida. O m2 de natureza que o Projeto M prometia a
cada habitante era um sonho ainda distante para se conquistar.
A363 distraía-se com o vaivém dos
transportadores aéreos e o cintilar das luzes da cidade. Resolveu sair um
pouco, já que não costumava sair durante o dia. Além do trânsito muito
congestionado de carros, transportadores aéreos, e outros veículos, tinha ainda
que usar seu traje anti-radiação.
Programou seu embarque para o
próximo carro movido a supercondutores, desceu pelo elevador e entrou no carro
em frente ao prédio de sua célula domiciliar. O veículo, com mais 5 pessoas
dirigiu-se até a Avenida Paulista, utilizando a pista central destinada a ele,
enquanto carros comuns, de outros combustíveis, entupiam os canteiros laterais
da avenida.
Dentro do veículo, sentada a seu
lado, uma jovem recebia as noticias diárias do mundo através de seu terminal
omninet, enquanto atrás dele mais 4 pessoas, algumas lendo omnilivros em
terminais acoplados aos encostos dos bancos e outras apenas miravam o trânsito
da avenida. Um dos passageiros tomava um frasco de hidrossodil, provavelmente,
Não devia ser água pois essa tinha se transformado em produto de exportação
depois da Guerra do Petróleo.
A363 também conectou seu terminal
e pôde ler as notícias do dia. As obras de reconstrução da Ilha de Manhattan
estavam aceleradas após a derrubada de todos os prédios que restauram depois do
bombardeio por ogivas nucleares, durante a Guerra do Petróleo. Os próprios
escombros estavam sendo usados para erguer o nível da ilha, comprometido após o
avanço do Oceano Atlântico sobre Nova York.
A China comunicava a construção
de nova estação colonizadora na Lua, com envio de 100 cientistas de várias
nações. O índice das bolsas subia aceleradamente com as novas notícias vindo do
país asiático. No Brasil, as negociações para conversão da Amazônia em
território internacional estavam avançadas. O governo exigia a troca por mais
áreas no Pólo Antártico, para expandir a região brasileira que seria destinada
ao Projeto*M.
Só de ler essa notícia, A363 teve
um calafrio. Na sua idade, 105 anos, já se via convidado a abandonar suas
funções e se aposentar. Desligou o terminal e olhou pela janela blindada, as
pessoas todas vestidas com seus casacos anti-radiação, circulando entre
vendedores ambulantes, enquanto transportadores aéreos da polícia circulavam
perseguindo os infratores do comércio.
Em poucos segundos, o condutor
automático sinalizou para A363 sua descida programada para a esquina da Avenida
do Ocidente, que ele conhecera como Brigadeiro Luis Antonio.
* Juarez José publicou o Livro de Poemas "Aroma de Amora".
Tem um romance inédito com o título de "Viagem ao Interior".
Participou de movimentos literários em Osasco e São Paulo. Este texto faz parte
de um texto de ficção sobre a cidade de São Paulo no ano de 2058.
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