domingo, 15 de setembro de 2013

Pequenas perdas irreversíveis 

*Por  Harry Wiese

Hoje vou fazer alusão a vários poetas para justificar e suavizar as pessoas e as pequenas coisas que se desprenderam de mim e foram para longe para nunca mais voltar.

Nos últimos tempos, eu tive muitas perdas. Foram perdas pequenas e tristes, quase sem importância, mas irreversíveis se tomadas ao pé da letra. Que bom que não perdi gente da família pela indesejada das gentes, como disse o poeta Manuel Bandeira, nem posses que valessem a pena chorar por elas. Tanto melhor, foram perdições de entrelinhas imperceptíveis, à maneira do orvalho das manhãs tentando regar sem sucesso as zínias e os cravos nos canteiros dos jardins. Todavia, amigos só de se ver e de se cumprimentar foram-se pelo menos dois por mês. E a cada partida surge a pergunta que nunca tem resposta: O que é a vida?

Faz tempo que não ouço o canto dos galos nas madrugadas. Só ouço o barulho de bicicletas, motos e carros dos operários se locomovendo para as fábricas. Não há mais cantoria nas manhãs ao nascer. Os galos foram empurrados para lugares distantes. Lá, nas longínquas aldeias, tenho notícias que também estão rareando. O poema de João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã tornou-se inútil e sem graça.

Pela minha decepção e desalento, só há galos nas granjas e galos de granja não cantam, morrem antes de crescer. Seria cativante ouvir centenas ou milhares de galos cantando ao mesmo tempo: seria uma orquestra galinácea sem precedentes. Na minha ingenuidade pensei que as aracuãs, que nos últimos tempos até se aninham nas varandas das casas, pudessem substituir os galos com sua cantoria bonita ao nascer da luz. Ledo engano, aracuãs só cantam em épocas de acasalar, depois emudecem e não se sabe para onde vão.

Tenho perdido leitores. Mais uma vez não consegui agradar a todos. Parodiando a música Epitáfio, dos Titãs, eu devia ter escrito mais, caprichado mais, renunciado menos, criticado menos; ah, sim, devia ter amado mais! Azar! Nem sempre se pode ter tudo o que se deseja na vida. Mesmo com tantas perdas estou sendo lido na Suíça, em Portugal, na Itália, na Austrália e no Paquistão.

O que mais me entristece é que eu tenho perdido palavras e pensamentos agradáveis. Para onde vão as palavras e os pensamentos? ─ Não sei. Apagam-se a si mesmos, ocultam-se, não querem mais viver. Ora dão sinais de vida, ora desaparecem novamente. Fazem isso para me angustiar e apavorar.

Também perdi a amizade de muitos que me eram caros. A vida dura e sofrida os fez reféns de si mesmos, esqueceram e perderam a pujança, seu vigor e sua robustez como eu, portanto, não devo reclamar, nem julgar. Cada pessoa sabe de si e não compete a ninguém deitar censura.

Tenho perdido o juízo entre o bem e o mal. Desagradei a pessoas com palavras mal ditas e mal escritas sem querer, e o malfeito tem preço a pagar, às vezes, alto demais. Perdi o olhar de criança inocente e não me comovem mais os apelos demagógicos e empíricos das ruas. Perdi, perdi e perdi. Tenho medo de perder-me a mim mesmo, porque os caminhos são tantos, as direções são muitas e os apelos nem sempre são confiáveis. Para onde vou? Procuro no poema “Cântico negro”, do poeta português José Régio, minha resposta: “Vem por aqui" ─ dizem-me alguns com os olhos doces/ Estendendo-me os braços, e seguros/ De que seria bom que eu os ouvisse/ Quando me dizem: "vem por aqui!" /Eu olho-os com olhos lassos,/ (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)/ E cruzo os braços, E nunca vou por ali.../.

Diante das minhas perdas reais, me consola o verso de Drummond, aliás, os versos do poeta maior sempre me consolam: “Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho. (...) Está morto, o que importa?” É isso mesmo. Minhas perdas são compensadas nos sonhos, assim como as do poeta. Nos meus sonhos estão todos vivos e felizes como fora outrora: galos cantando nas madrugadas, leitores com textos nas mãos, minhas palavras fluindo na ponta da pena, meus dias e os dias dos que amo se desacumulando rumo à mocidade e à felicidade. Os sonhos, enquanto sonhos, realmente têm o poder de transformar o impossível em realidade. Que bom! Assim, evoco mais uma vez o poeta Manuel Bandeira porque não há argumentos contra a competência. A poesia ainda tem seu espaço. “O meu dia foi bom, pode a noite descer, a noite com os seus sortilégios. Encontrará lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, com cada coisa em seu lugar.” E as perdas? ─ tudo bem, fico triste, mas não choro por elas!

* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário