Luto em São José
* Por Marco Albertim
Há um vazio na Praça Dom Vital. O mercado São José não perdeu o frescor
de sua pintura verde, conversa ruidoso com as copas de cada fícus no entorno da
praça. O engraxate de barba rala, espreita os pés calçados de tênis de moços e
meio-moços; com resignação, inda que com pesar. De dentro do mercado, o cheiro
nunca sumido de carnes e pescados cortados embriaga; a primeira porção de
tempero é urdida ali mesmo, no gosto e no juízo imaginoso dos marchantes. Na
esquina do Beco do Sirigado - o nome é tão só uma minúcia plástica - a
prostituta se deixa espremer pelo ir e vir de moços e velhos. O pregão dos
mascates sonoriza o tumulto que há em seu sexo, e expõe a fileira sinistra de
dentes em sua boca. O vestido é tão desbotado que põ e a nu a indiferença com o
único nicho vazio da praça e do mercado.
Há uma semana ali estivera Joca. Deixara de ser marchante, mesmo fuçando
o bairro de São José como se estivesse desentranhando as sujeiras das unhas.
Joca era miúdo e comprido, a cor pálida ele a absorvera sorvendo a liquidez
gelatinosa do Rio Capibaribe. João Cristiano Gomes, 82 anos, nunca fora famoso;
não tornou-se conhecido pelo nome do batistério; Joca Ganso por causa do
comprimento do tronco, do pescoço; Joca do Batutas por ser da ala de
compositores do bloco de frevo, desde sua fundação em junho de 1932; Joca do
Batutas por ser responsável por música e letra do frevo Não deixem morrer
Batutas. Ou Joca somente, o militante comunista que empunhara a bandeira
vermelha ao lado de Gregório Bezerra.
No Pátio de São Pedro, onde o bloco fora fundado, as paredes brancas do
Buraco do Sargento estampam uma dúzia de fotos com ele e confrades; ora segura
um copo com cerveja, ora empunha o microfone e deixa luzir nos olhos a
convicção de que o Batutas de São José sobreviverá ao capitalismo, dará
boas--vindas ao socialismo. A gravata escura entre as abas do terno branco não
destoa da indumentária, é o traço que acentua a opção que fizera por uma mulher
negra; com Maria na única casa de sua propriedade, em Pau Amarelo, junto a um
córrego que ora deságua no mar, ora se deixa encher para compor a trilha sonora
sob a qual ele e a negra de linhagem banta coitaram para gerar vinte e dois
mulatos pardacentos.
Não tivera a vocação para causídico, abandonando a faculdade ao fim do
primeiro ano letivo; e logo entrou para a ensinar frevo ao povo de São José,
onde Solano Trindade se fizera poeta, poeta negro e comunista. Compôs tanto
frevo, sem o cuidado de juntar a obra à matriz que a gerara, certo de que
frases sem afetação são como fotos em preto e branco - atiçam a memória,
documentam o episódio.
Não só a ala de compositores do Batutas empobreceu. São José está com
frio no mês de setembro. As chuvas não previstas choram no cenário agora mais
cinzento, tão ou mais desde a demolição da Igreja dos Martírios; da igreja e do
casario no mesmo feitio barroco. Ele chorou a morte de Gregório Bezerra,
encheu-se de orgulho por ter ouvido do panelense - O que eu tenho medo é de ter
medo.
O espectro de Joca ronda as entranhas de São José; não pela memória de
seus moradores, porquanto os domicílios ruíram pondo fim a sua memória; não
pela memória sem memória da prostituta, filha bastarda do Recife; mas na
lembrança sumida do engraxate, também enxotado do bairro e hoje oculto no
Córrego do Abacaxi; por certo também no boxe em cuja pedra o compositor cortara
a carne para dar vida a seus frevos. Mais ainda, na cadeira vazia do Cais de
Santa Rita, onde a ala de compositores a preserva certa de que a cada carnaval,
ele se imortaliza.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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