Do surreal ao bestial
* Por
Fernando Yanmar Narciso
As crianças são o futuro da pátria. Nelas depositamos a esperança que
façam direito tudo o que fizemos de errado e consertem as cagadas dos adultos
de hoje e dos que vieram antes de nós... Pelo menos é assim que devíamos agir.
No entanto, na maioria das vezes elas são usadas como um tipo de cimento que
mantém a união de pessoas que não se suportam. Quer garantir seu pé-de-meia sem
fazer nenhum esforço, garota? Segundo a ficção, o golpe da barriga em caras
ricos nunca falha. Você se separa dele e dá a luz a um João-teimoso que
garantirá seu sustento para sempre.
Eis um dos pilares da dramaturgia: Se sua novela não tem criancinhas
indesejadas, que foram concebidas com a função de algemas, então não é novela.
Mas nem sempre esse elemento narrativo mega-manjado é o fio condutor das
tramas. Vejamos, por exemplo, a atual novela das nove, Amor à Vida, o
nome mais irônico para uma novela desde O Salvador da Pátria. Era de se
esperar que uma trama que gira em torno de uma criança, a exemplo dos hits Carrossele
Chiquititas, apresentasse alguma leveza aos telespectadores, isso se a
novela fosse a das seis ou Malhação. Mas como estamos no mundo sórdido e
desalmado do horário nobre, é melhor você olhar pro céu, pois é de lá que
satanás vai descer.
Em sua estréia no horário das nove, Walcyr Carrasco brinda a audiência
com uma trama que mistura o realismo meio punk de João Emanuel Carneiro com a
explosão rocambolesca de Gloria Perez para contar- surprise, surprise!- uma
trama de inveja, intrigas, conflitos familiares e com uma quantidade de
romantismo pequena o bastante para ainda poder ser chamada de novela. Lembram-
se de mocinhas fortes como a vingadora Nina ou a briguenta Morena? Coisa “do
passado”.
Nesse mundinho aqui a dita heroína da trama, Paloma (Paolla Oliveira),
voltou a ser a clássica mocinha com um cromossomo a menos, um saco sem fundo
destinado a sofrer mais que a Thalia. A família Khoury, como toda boa família
milionária de novela, só tem gente triste e problemática. A estrela da novela,
o homossexual Félix (Matheus Solano), está disposto a qualquer coisa para ser o
único herdeiro do hospital San Magno, capitaneado pelo também vilanesco patriarca
César (Antônio Fagundes). Numa viagem ao Peru, Félix conta à sua irmã Paloma-
ou Pamonha, como vem sido chamada na net- que é filha adotiva de César e Pilar
(Suzana Vieira) e ela desaparece das vistas da família, reaparecendo, tempos
mais tarde, grávida do hippie mais agressivo e chato do mundo, Ninho (Juliano
Cazarré). Sensatez é o sobrenome dessa mulher.
Félix, ao saber que há mais um herdeiro na parada, segue Paloma, que
entra em trabalho de parto no banheiro de um boteco, e toma dela o neném antes
que a mãe recobre a consciência, jogando a criança literalmente no lixo! Temas
leves, para toda a família... Assim como o golpe da barriga, coincidências
impossíveis também não podem faltar em folhetins. Eis que o contador pobretão
Bruno (Malvino Salvador, o Capitão Canastrão), desesperado após perder um filho
e a esposa durante o parto, vaga a esmo pelas ruas e ocorre de passar
exatamente diante da caçamba onde Félix deixou a criança. Acreditando, sabe-se
lá por que, que Deus a deixou ali para que a achasse, ele resolve ficar com a
menina, pedindo para que falsifiquem o relatório no hospital, dizendo que sua
falecida esposa estava grávida de gêmeos.
Enfim, doze anos se passam, e somos apresentados à Paulinha (Klara
Castanho, a melhor atriz da novela), a menina achada no lixo por Bruno e causa
de todo o inferno astral passado pelos personagens principais. Mais
coincidências rocambolescas se desenrolam quando Bruno e Paloma se conhecem e
se apaixonam, criando um casal ainda mais sem graça que Paloma/Ninho. Logo, ela
e Félix descobrem que Paulinha é a filha desaparecida e reiniciam suas guerras
particulares, ela para separar a filha do pai adotivo, ele para riscar as duas
do mapa. Aí começa aquela xaropada de sempre.
Nos tempos de Salve Jorge, escrevi sobre a expressão“explosão da
geladeira”, cunhada para ilustrar o momento numa trama em que, não importa o
que o autor tente fazer, a sua história simplesmente tornou-se impossível de se
levar a sério. Se no caso de JEC e Gloria Perez esses momentos foram alcançados
sem querer, aqui Carrasco os elevou ao status de arte renascentista. A
quantidade de insanidades por capítulo é tão marcante que faz o realismo
fantástico de Saramandaia parecer um filme de Truffaut. Carrasco parece
escrever como um menino jogando Candy Crush em dez celulares ao mesmo tempo. A
ânsia por agradar a gregos e troianos em seu primeiro trabalho no horário nobre
e as possibilidades são tantas que ele nem sabe por onde começar.
Até o momento, essa tem sido a novela mais sexualizada dos últimos tempos.
Os saradões da vez já se atracaram tanto pelos corredores do San Magno que é
quase certeza de que, se você mascar um quadradinho de chiclete Adams naquele
refeitório, pegará AIDS. Quanto à trama principal, ninguém nunca sabe o que vai
acontecer. Depois que descobriu a verdade sobre Paulinha, Félix já tentou
matá-la injetando água em suas veias em vez da sua medicação, influenciou Ninho
a seqüestrar a própria filha e levá-la para o Peru, de onde já foi resgatada
por Bruno e Pamonha numa sequência de ação à la MacGyver.
Na volta ao Brasil, o vilão conseguiu com que colocassem drogas na mala
de Paloma (não confundir com na mala da Paloma), fazendo-a passar por
traficante e louca diante da família, e ainda conseguiu com que a internassem
num hospício, onde encheram o ó dela de psicotrópicos e lhe fizeram uma
exagerada e dolorosa sessão de tratamento de choque. Creio que logo também
esfregarão palha de aço no corpo dela e lhe darão um banho de água do mar
fervendo... É uma crueldade enorme que o autor nos faça pensar que tanto caos
esteja sendo provocado pela existência de uma garotinha. E é ainda mais cruel
se pensarmos, levando em consideração os custos e benefícios, que talvez os
personagens levassem uma vida melhor se ela morresse. É Walcyr fazendo jus ao
sobrenome Carrasco...
*Designer e escritor. Sites:
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