O complexo de Ataxerxes
* Por
Hermes Lima
A mais comum das
acusações aos homens que exercem o poder assegura que, quando eles se apanham
nas alturas, esquecem os velhos amigos, os antigos camaradas, as relações da
mocidade e do tempo em que "não eram nada". Embora verdadeira, essa
acusação não autoriza, entretanto, conclusões pessimistas a respeito dos
sentimentos e do caráter daqueles que subiram. O clima do poder é demasiado
perturbador da alma humana para que possamos identificar no cidadão que ocupa,
por exemplo, a chefia do Estado, o mesmo cidadão que antes conhecêramos no
sistema das relações geradas pela convivência social quotidiana.
Aqueles que insistem
em prolongar com o homem no poder a camaradagem que mantinham com esse mesmo
homem, fora do poder, sofrem do que peço licença para denominar: - o complexo
de Ataxerxes.
Ataxerxes é o
personagem principal do primeiro conto do belo livro de Aníbal Machado -
"Vida feliz". Um dia, descobre Ataxerxes que o chefe da nação havia
sido seu colega de colégio. Tratavam-se intimamente pelos apelidos familiares.
Xerxes pra lá, Zito pra cá. Resolve, então, com a família, mudar-se para o Rio.
Liquidou tudo quando possuía no interior, e, entre grandes planos para o
futuro, chega à capital. Aqui envia um telegrama ao presidente, procura falar
ao antigo companheiro, deste não consegue se aproximar e nada obtém. Todas as
suas esperanças repousavam numa ilusão: que o presidente da República fosse o
mesmo Zito dos bons tempos colegiais.
A isto denomino
complexo de Ataxerxes, a essa deformação intimista e sentimental do homem no
poder. Nem Ataxerxes nem todos aqueles que sofrem do complexo do seu nome
percebem que Zito, camarada jovial de escola, está para Zito, presidente da
República, como a pessoa privada do artista está para o personagem que ele vive
no palco.
Presidente, rei,
ditador, ministros são papéis a serem representados e vividos, papéis que
transfiguram radicalmente os indivíduos que nos mesmos se encarnam. Ninguém
confunde o Rei Lear, que admirou no palco, com a pessoa do ator que o viveu à
luz da ribalta.
Assim também na
política, no fascinante domínio do governo dos homens. O plano do poder não é,
de modo algum, normal, porém especial. No teatro há papéis.
Na política há
funções. Viver no palco um papel é substancialmente idêntico a exercer, na
política, funções de mando. Idêntico no sentido de que, em ambos os casos, os
indivíduos representam algo além deles próprios, algo que transcende a
significação exclusiva da personalidade individual, algo que, enquanto durar a
representação, transforma e transfigura seus protagonistas.
O complexo de
Ataxerxes consiste exatamente em não alcançar que o plano do poder tem
exigências, leis de conduta, razões de agir, motivos de exaltação que o plano
da vida social comum desconhece. O poder é também uma representação, onde
ninguém, em si mesmo, é igual ao que representa. Eis porque é absurdo pedir ao
homem no poder que se conduza como antes de lhe haver sido distribuído o papel
que foi chamado a desempenhar.
Qualquer chefe de
Estado é, por identificação com seu destino político, um ser psicologicamente
diferente do indivíduo que foi chamado a desempenhar aquele papel. Toda sua
conduta passará necessariamente a refletir o plano especial em que move, e em
que só se move porque exerce aquele cargo. Amizades, relações, sentimentos,
modos de ser, de agir e de pensar, tudo participará dessa categoria nova em sua
vida afetiva e intelectual, que é a categoria do homem no poder. Mesmo os
indivíduos mais nutridos de filosofia e autocrítica a isso não escapam. O
poder, torno a repetir, é uma representação, onde ninguém, em si mesmo, é igual
ao que representa.
O homem no poder
sofre, em grau menor ou maior, de três ilusões capitais: a ilusão de que tudo
pode, a ilusão de que tudo sabe e a ilusão de que seu poder jamais terminará.
Provavelmente, a essas
ilusões sentidas e vividas deve-se o fato de, quando no poder, ganharem os
homens ainda mais insignificantes um relevo ao qual jamais supúnhamos fossem
capazes de atingir. A face do homem no poder, até do homem mais medíocre,
ilumina-se de uma luz, que não é dele mas o transfigura. É a luz própria do
plano especial em que se move. Também à luz do palco, as caracterizações
transformam e transfiguram os atores.
É evidente que o poder
exerce sobre a alma humana fascinação avassaladora. O sentimento de que se
possui autoridade para mandar e ser obedecido perturba o psiquismo dos
indivíduos. Exatamente porque conduz a tudo, o poder exprime, no campo da
experiência humana, um infinito de possibilidades.
Que o poder participa
do caráter de representação teatral e que o governante é, no fundo, um ator
vivendo algo diferente dele próprio, podemos ainda deduzir da mediocridade a
que retorna a grande e absoluta maioria dos que deixaram ou perderam funções de
mando. Mesmo um general prussiano, quando reformado, converte-se numa flor.
Em regra, ao se
afastarem do poder, alimentam seus antigos ocupantes a ilusão de continuarem a
ser tratados e considerados como se nele permanecessem.
É a mesma ilusão que
teria um ator se esperasse ser tratado, fora do palco, do mesmo modo e com as
mesmas honras atribuídas a seu papel.
O complexo de
Ataxerxes consiste, pois, em identificar no homem no poder o homem que existia
antes, fora do poder. Na verdade, são duas pessoas diferentes, pois atuam em
planos tão diversos que os motivos de inspiração e de conduta nem sequer se
assemelham.
O plano do poder é um
plano especial, de contatos e relações especiais, um plano que se insere na
trama da vida humana como se fora uma representação. O governante é ator, pior
vive um papel. Foi exatamente o que Ataxerxes não compreendeu. Daí sua
desventura, e a desventura de todos os portadores do complexo do seu nome.
(Idéias e figuras,
1957.)
* Político
(ex-primeiro-ministro no governo João Goulart), jurista, jornalista e escritor,
membro da Academia Brasileira de Letras
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