Crônica para um novo ano
* Por
Urariano Mota
Para começo de
conversa, cito do magnífico livro “É isto um homem?”, de Primo Levi, que fala
de suas memórias em campo de concentração nazista:
“Steinlauf
me vê, me saúda, e, sem rodeios, me pergunta, severamente, por que não me lavo.
E
por que deveria me lavar? Me sentiria melhor do que estou me sentindo? Alguém
gostaria mais de mim? Viveria um dia, uma hora a mais? Pelo contrário, eu
viveria menos, porque lavar-se dá trabalho, é um desperdício de energia e de
calor. Será que Steinlauf não sabe que bastará meia hora entre os sacos de
carvão para acabar com qualquer diferença entre nós dois? Quanto mais penso
nisso, mais acho que lavar a cara em nossa situação é tolice, futilidade até;
hábito automático ou, pior, lúgubre repetição de um ritual já extinto. Vamos
morrer, todos; estamos para morrer; se é que me sobram dez minutos entre a
alvorada e o trabalho, quero destiná-los a outra coisa, a fechar-me dentro de
mim mesmo, a fazer o balanço da minha vida, ou talvez a olhar para o céu e a
pensar que talvez eu o veja pela última vez; ou a me deixar viver, apenas,
permitir-me o luxo de um brevíssima folga.
Steinlauf,
porém, passa-me uma descompostura. Terminou de se lavar, está se secando com o
casaco de lona que antes segurava, enrolado, entre os joelhos e que logo
vestirá, e, sem interromper a operação, me dá uma preleção em regra.
Já
esqueci, e o lamento, suas palavras diretas e claras, as palavras do ex-sargento
Steinlauf do exército austro-húngaro, Cruz de Ferro da Primeira Guerra Mundial.
É uma pena: vou ter que traduzir seu incerto italiano e sua fala simples de bom
soldado em minha linguagem de homem cético. Seu sentido, porém, que não esqueci
nunca mais, era este:
Justamente
porque o Campo (de concentração nazista) é uma grande engrenagem para nos
transformar em animais, não devemos nos transformar em animais. Até num lugar
como este pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso
depoimento. E, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a
estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer
direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas
ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo,
justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. Portanto,
devemos nos lavar, sim, ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o
casaco como toalha. Devemos engraxar os sapatos, não porque assim reza o
regulamento, e sim por dignidade e decência. Devemos marchar eretos, sem
arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para
continuarmos vivos, para não começarmos a morrer”.
Essa página para mim
tem um sentido mais profundo que aquele discurso de Chaplin em O Grande
Ditador. Repito o melhor trecho de Primo Levi :
“Nesta
grande engrenagem para nos transformar em animais, não devemos nos transformar
em animais. Até num lugar como este pode-se sobreviver, para relatar a verdade,
para dar nosso depoimento. E, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar
ao menos a estrutura, a forma da civilização.”
Essa grande página
junto agora a uma do jornal O Bocão do nosso amigo Mário Sapo, que o registro civil chama de José
Amaro Correia. Ele está cego, num cadeira de rodas, e nos envia esta mensagem
em seu jornal:
“NOSSA
TERRA TEM COMETA
No
dia em que a sonda robô pousou no cometa,
depois de 10 anos, 8 meses e 11 dias de viagem, abriu-se um nova
mensagem da ciência. Foi uma das maiores realizações na pesquisa espacial. Eram
quatro horas da manhã, e até as cinco, durante uma hora, ouvíamos o mesmo som
que os cientistas ouviram vindo do cometa.
Depois
de alguns dias estudando os sons, entendemos o cometa que passava pelo alto das
praias de Paulista (a cidade do grande Recife, onde Mário Sapo escuta o rádio,
sua única fonte de informação nos últimos tempos). A mensagem, que também ouvi
de madrugada, era
O
cometa estava desejando um bom natal e um novo ano de solidariedade e amizade.
A
mensagem foi dirigida para os leitores do Bocão: para os moradores de Paulista,
de Pernambuco, do Brasil e todos moradores da terra”.
Que bonito, não é? Se
o nosso amigo, do alto da sua esperança e padecendo de males que a outro homem
deixaria deprimido, se ele nos envia tais palavras, somente podemos nos sentir
pequenininhos e medíocres, de tão reclamões e mal humorados que somos, tendo
muito mais que ele, pelo menos na aparência. Então, que recebamos com admiração
e proveito as suas palavras de alento e esperança. Que venha um novo ano de
solidariedade, porque meu amigo Mário já ouviu na esperança o que ainda não
vimos:
“O
cometa estava desejando um bom natal e um novo ano de solidariedade e amizade.
A
mensagem foi dirigida para os leitores do Bocão: para os moradores de Paulista,
de Pernambuco, do Brasil e todos moradores da terra”.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Encontrar encanto em quem deveria estar desencantado é sim, surpreendente.
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