Camping I – Junho
* Por
Urda Alice Klueger
Quando emerjo da minha
pequenina barraca, oito ou nove da manhã, depois de ter dormido acolhedoramente
junto ao seu peito ausente, estou cheia de bem-estar e pronta para mais um
livro a ser lido ou estudado, que tal já fiz antes de dormir, provavelmente até
lá pelo meio da noite. Então emerjo da barraquinha azul que tem quase nada, um
colchão, uma coberta e um travesseiro de penas, herança de família, um lençol
cor-de-rosa, uma sacola com coisas pessoais e uma pasta com livros e cadernos e
saio para um mundo ainda envolto pela névoa. A grama verde está toda molhada
pela névoa espessa; meu carro, ali pertinho, também está todo perolado da água
condensada daquela cerração. Então saio para ela e fico encantada com o
silêncio dela, e dentro dela posso ver o rio com compridos cardumes de
compridos peixes que parecem que nunca sentem frio, e então me dou conta que o
barulhinho que ouvia dentro do sono é o barulhinho da água do rio bastante
largo para que a gente não se atreva a atravessá-lo a pé, e que se encachoeira
um pouco adiante, onde acaba o remanso que é o domínio dos cardumes dos peixes
compridos.
Atenta, percebo outros
pequeninos ruídos que parecem silêncios: são pequenos pios, leves arrulhos,
gorjeios quase imperceptíveis, e se prestar bem atenção, até distingo de quais
árvores ou arbustos tais barulhinhos provêm sem quebrar, de forma nenhuma, o
grande silêncio da névoa espessa. Pela grama molhada costuma saltitar
silenciosamente um quero-quero que penso que não está acasalado, pois nunca o
vi a defender barulhentamente ninhos e filhotes. Os insetos que cometeram
suicídio durante a noite jogando-se sobre a lâmpada que fica acesa já foram
devidamente devorados pelas formigas pretas que vejo ao redor dos meus tênis
brancos enquanto estudo, e as formigas pretas faz tempo que se foram embora
para algum ninho tão escondido e silencioso que nunca o vi. Tudo está limpo e
organizado nas manhãs de névoa, e escovo os dentes observando a perfeição da
mesma e da natureza, atenta aos arrulhos e cicios silenciosos, e depois como
meu iogurte passeando pela grama que molha minhas meias. Sei que lá longe, na
cidade, está bem mais quente, mas ali naquela umidade do silêncio e da névoa,
são necessárias meias de lã e um casaco peludo. Sei que antes do meio dia o sol
vai perfurar aquele mundo branco e que vai transpassar as folhas dos palmitos
novos que ficam perto da churrasqueira aonde estudo, deixando aberta à minha
visão a clorofila de cristal daquelas folhas com tanta clareza como se cada
folha tivesse sido aberta por um fino e impiedoso bisturi que não permite a
intimidade da cor interna – mas por enquanto as folhas dos palmitos novos
também ainda estão mergulhadas na névoa, e todo aquele mundo silencioso, branco
e adstringente é um mundo pejado de você, tão cheio da sua doçura quanto o meu
coração costuma estar. E eu o sinto silenciosamente em cada arrulho silencioso,
em cada cicio, em cada piu quase inaudível, na cerração e na clorofila que
virá, e principalmente dentro do meu coração. Então, sem fazer barulho para não
quebrar aquela harmonia, começo a tirar da minha pasta o livro que terei que
ler naquela manhã, já me envolvendo psicologicamente com ele, quando lá do rio
vem o primeiro ruído:
- Blump! – e foi um
dos peixes compridos que pulou fora da água e quebrou o silêncio, e quebrou a
ilusão de que se estava no Mundo das Fadas, e devolveu ao cenário à sua
realidade terrestre. Então me certifico de duas coisas: que está mesmo na hora
de estudar, e que, mais que na névoa e na beleza da natureza, você está tão
vivo e tão forte dentro de mim!
Blumenau, 11 de Junho
de 2005 (Véspera do dia dos Namorados)
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale”
(dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Duas realidades e um único amor.
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