O português
das bulas – II
* Por Deonísio da Silva
O
cliente toma óculos ou lupa e começa a difícil tarefa de ler a bula. Na compra
do remédio – os marqueteiros dos laboratórios diriam 'produto' – houve
dificuldade prévia. O balconista foi obrigado a decifrar os garranchos do
médico. Como é que a sociedade brasileira tolera tamanha desconsideração e
irracionalidade? A simples troca de letras pode transformar um remédio em
veneno. E muitos médicos prescrevem suas receitas numa caligrafia
incompreensível.
Um dia desses fui surpreendido com insólita metodologia de
interpretação. Balconista e escritor tentavam ler o que certo doutor
prescrevera a uma velhinha que, como a mãe do presidente Lula e todas as outras
do universo, nascera analfabeta e ainda não tinha aprendido a ler. Foi então
que uma luz desceu sobre a mente da balconista. 'Ah, esta receita é do doutor
Fulano de Tal'. Ela sabia que aquele médico receitava sempre o mesmo remédio! O
estilo, no léxico, lembrava o de Marcel Proust na sintaxe!
Cápsula, drágea, posologia, solução oral, ingestão concomitante
etc, eis amostras de palavras e expressões muito freqüentes em bulas. Quem as
entende? Na bula de uma pastilha, que sequer entrou numa escola de judô e por
isso não tem faixa preta, lemos esta maravilha nas indicações: 'nas irritações
e dores orofaríngeas oriundas de infecções ou processos cirúrgicos, como
auxiliar no tratamento de angina de Vincent'. Modestos, os pesquisadores dão o
próprio nome às doenças que identificaram. O médico francês Henri Vincent
estudou a angina e morreu aos 88 anos. Terá chupado muito a tal pastilha? Com
faixas vermelhas ou pretas, os remédios custam sempre uma nota preta.
A bula tem uma história curiosa. Veio do latim e significa bolha.
As primeiras bulas eram marcas feitas com anel para autenticar documentos
oficiais e tinham a aparência de bolhas. Bola em latim é bulla. Foi o rei francês Luís II, o Gago, que entre 877 e 879
denominou bula o selo real. Afinal, semelhava uma esfera ou bola.
Antigamente
a embalagem mais comum dos remédios era uma garrafinha. Pendurada num cordão
vinha a bula que tinha o fim de atestar que não era uma garrafada, era um
remédio oficial. A garrafinha passou a ser denominada frasco. A substância, que
era líquida, passou a ser oferecida em comprimidos.
A linguagem das bulas dos remédios deixou de defender os fracos e
oprimidos. Hoje, só defende os frascos e comprimidos, como já ironizou antiga
peça publicitária.
A Associação Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – parece
nome de cartão de crédito – tomou a iniciativa de modificar as regras para a
redação das bulas. Que os laboratórios chamem profissionais que saibam
escrever.
*
O escritor Deonísio da Silva é Doutor em Letras pela USP e tem trinta livros
publicados, entre romances, contos e ensaios, entre os quais os romances Os
Guerreiros do Campo, Avante, soldados: para trás, e De onde vêm as palavras,
todos publicados pela Girafa. Site: www.deonisio.com.br
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