sábado, 10 de janeiro de 2015

O complexo de Ataxerxes

* Por Hermes Lima


A mais comum das acusações aos homens que exercem o poder assegura que, quando eles se apanham nas alturas, esquecem os velhos amigos, os antigos camaradas, as relações da mocidade e do tempo em que "não eram nada". Embora verdadeira, essa acusação não autoriza, entretanto, conclusões pessimistas a respeito dos sentimentos e do caráter daqueles que subiram. O clima do poder é demasiado perturbador da alma humana para que possamos identificar no cidadão que ocupa, por exemplo, a chefia do Estado, o mesmo cidadão que antes conhecêramos no sistema das relações geradas pela convivência social quotidiana.

Aqueles que insistem em prolongar com o homem no poder a camaradagem que mantinham com esse mesmo homem, fora do poder, sofrem do que peço licença para denominar: - o complexo de Ataxerxes.

Ataxerxes é o personagem principal do primeiro conto do belo livro de Aníbal Machado - "Vida feliz". Um dia, descobre Ataxerxes que o chefe da nação havia sido seu colega de colégio. Tratavam-se intimamente pelos apelidos familiares. Xerxes pra lá, Zito pra cá. Resolve, então, com a família, mudar-se para o Rio. Liquidou tudo quando possuía no interior, e, entre grandes planos para o futuro, chega à capital. Aqui envia um telegrama ao presidente, procura falar ao antigo companheiro, deste não consegue se aproximar e nada obtém. Todas as suas esperanças repousavam numa ilusão: que o presidente da República fosse o mesmo Zito dos bons tempos colegiais.

A isto denomino complexo de Ataxerxes, a essa deformação intimista e sentimental do homem no poder. Nem Ataxerxes nem todos aqueles que sofrem do complexo do seu nome percebem que Zito, camarada jovial de escola, está para Zito, presidente da República, como a pessoa privada do artista está para o personagem que ele vive no palco.

Presidente, rei, ditador, ministros são papéis a serem representados e vividos, papéis que transfiguram radicalmente os indivíduos que nos mesmos se encarnam. Ninguém confunde o Rei Lear, que admirou no palco, com a pessoa do ator que o viveu à luz da ribalta.

Assim também na política, no fascinante domínio do governo dos homens. O plano do poder não é, de modo algum, normal, porém especial. No teatro há papéis.
Na política há funções. Viver no palco um papel é substancialmente idêntico a exercer, na política, funções de mando. Idêntico no sentido de que, em ambos os casos, os indivíduos representam algo além deles próprios, algo que transcende a significação exclusiva da personalidade individual, algo que, enquanto durar a representação, transforma e transfigura seus protagonistas.

O complexo de Ataxerxes consiste exatamente em não alcançar que o plano do poder tem exigências, leis de conduta, razões de agir, motivos de exaltação que o plano da vida social comum desconhece. O poder é também uma representação, onde ninguém, em si mesmo, é igual ao que representa. Eis porque é absurdo pedir ao homem no poder que se conduza como antes de lhe haver sido distribuído o papel que foi chamado a desempenhar.

Qualquer chefe de Estado é, por identificação com seu destino político, um ser psicologicamente diferente do indivíduo que foi chamado a desempenhar aquele papel. Toda sua conduta passará necessariamente a refletir o plano especial em que move, e em que só se move porque exerce aquele cargo. Amizades, relações, sentimentos, modos de ser, de agir e de pensar, tudo participará dessa categoria nova em sua vida afetiva e intelectual, que é a categoria do homem no poder. Mesmo os indivíduos mais nutridos de filosofia e autocrítica a isso não escapam. O poder, torno a repetir, é uma representação, onde ninguém, em si mesmo, é igual ao que representa.

O homem no poder sofre, em grau menor ou maior, de três ilusões capitais: a ilusão de que tudo pode, a ilusão de que tudo sabe e a ilusão de que seu poder jamais terminará.

Provavelmente, a essas ilusões sentidas e vividas deve-se o fato de, quando no poder, ganharem os homens ainda mais insignificantes um relevo ao qual jamais supúnhamos fossem capazes de atingir. A face do homem no poder, até do homem mais medíocre, ilumina-se de uma luz, que não é dele mas o transfigura. É a luz própria do plano especial em que se move. Também à luz do palco, as caracterizações transformam e transfiguram os atores.

É evidente que o poder exerce sobre a alma humana fascinação avassaladora. O sentimento de que se possui autoridade para mandar e ser obedecido perturba o psiquismo dos indivíduos. Exatamente porque conduz a tudo, o poder exprime, no campo da experiência humana, um infinito de possibilidades.

Que o poder participa do caráter de representação teatral e que o governante é, no fundo, um ator vivendo algo diferente dele próprio, podemos ainda deduzir da mediocridade a que retorna a grande e absoluta maioria dos que deixaram ou perderam funções de mando. Mesmo um general prussiano, quando reformado, converte-se numa flor.

Em regra, ao se afastarem do poder, alimentam seus antigos ocupantes a ilusão de continuarem a ser tratados e considerados como se nele permanecessem.

É a mesma ilusão que teria um ator se esperasse ser tratado, fora do palco, do mesmo modo e com as mesmas honras atribuídas a seu papel.

O complexo de Ataxerxes consiste, pois, em identificar no homem no poder o homem que existia antes, fora do poder. Na verdade, são duas pessoas diferentes, pois atuam em planos tão diversos que os motivos de inspiração e de conduta nem sequer se assemelham.

O plano do poder é um plano especial, de contatos e relações especiais, um plano que se insere na trama da vida humana como se fora uma representação. O governante é ator, pior vive um papel. Foi exatamente o que Ataxerxes não compreendeu. Daí sua desventura, e a desventura de todos os portadores do complexo do seu nome.

(Idéias e figuras, 1957.)


* Político (ex-primeiro-ministro no governo João Goulart), jurista, jornalista e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras

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