quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Um giro pelo patriotismo


* Por Mara Narciso

Sete de setembro era um dia amarelo e quente, de pelo menos 34 graus. A cor sugeria a fumaça no ar, vinda das queimadas. As chuvas só chegariam a fins de outubro ou começo de novembro. A emoção de vestir o uniforme de gala, preparado na véspera era compartilhada pelas colegas, gente cheia de sonhos, exceto eu. A espera pela vez do Colégio Imaculada Conceição desfilar era longa. As alunas acordavam cedo, tomavam um café reforçado, para não passar mal no desfile, que acontecia na Praça da Matriz, debaixo dos fícus, à época cheios de “lacerdinhas”. Era uma praga, um bichinho preto que habitava as folhas daquelas árvores, fechando-as, e tinha preferência pela cor amarela das roupas e os olhos das pessoas, fazendo-as lacrimejar por um par de horas. Queimava como pimenta. O apelido era uma homenagem ao político Carlos Lacerda. Meu pai Alcides não gostava dele e Milena, a minha mãe, certamente deveria gostar. Ela pensava diferente do meu pai.

Milena nos mostrava o seu amor à Pátria (não como meu pai, que colocava no carro o adesivo “Brasil, ame-o ou deixe-o”) e nos contava coisas do Ginásio Diocesano, onde ela tinha estudado no começo da década de 1950. Falava bem dos seus professores, homens cultos, entre padres e outros de graduação superior, como médicos, engenheiros e advogados, num tempo em que isso era raridade.

No dia Sete de Setembro, ela cantava para nós os Hinos Nacional, à Bandeira e da Independência, que tinha aprendido naquela escola. Ficava explicando o significado dos versos, especialmente o começo do Hino Nacional: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ de um povo heróico o brado retumbante”. Punha as palavras na ordem direta: as margens plácidas do Ipiranga (um riacho) ouviram o brado retumbante de um povo heróico. Tão simples e o poeta Joaquim Osório Duque Estrada, complicando e embelezando o nosso hino.

E o Hino à Bandeira: “Salve lindo pendão da esperança/ salve símbolo augusto da paz/ tua nobre presença à lembrança/ a grandeza da Pátria nos traz/ Reflete este afeto que se encerra em nosso peito juvenil/ querido símbolo da terra/ da amada terra do Brasil//”. E o Hino da Independência: “Já podeis da Pátria filhos/ ver contente a mãe gentil/ já raiou, a liberdade/ no horizonte do Brasil!”.

O uniforme de gala do Colégio Imaculada Conceição era assim: na cabeça, uma boina branca, achatada, que as moças colocavam quebradas de lado, para dar charme. Para que não caíssem, as pregavam com grampos. Os cabelos eram o resultado de cuidados à parte. Não se usava fazer escova, mas touca de meia. As moças que tinham cabelos anelados (a maioria, como ainda é hoje no nosso país de mestiços) os “rodavam” em torno da própria cabeça, para alisá-los, e por cima colocavam uma touca. Primeiro para um lado e depois para o outro, para igualar os lados. Ainda hoje há quem ache que o resultado seja mais natural do que o da escova.

Então, vinha a blusa branca (mais para pérola) de mangas longas bufantes, de tecido “casca de ovo”, que tinha um brilho feito cetim. Na extremidade tinha um punho de 15 cm, colocado por cima, azul marinho, e com uma sequência de rabo de rato branco, o mesmo que tinha na gola marinheiro, muito charmosa. A saia azul marinho era plissada e pouco abaixo do meio das coxas (para desespero das freiras). Para completar, um par de luvas brancas, meias também brancas no meio da canela e sapatos pretos baixos.

As moças bonitas eram destaque e marchavam na frente, algumas na banda, sendo que uma, a mais desinibida era escolhida para ser a baliza. Esta desfilava na dianteira girando um bastão e fazendo malabarismos. O romper do tarol era mágico e mexia com o compasso dos nossos corações. As turmas mais adiantadas formavam os primeiros pelotões, sendo as de maior estatura na frente e as menores na sequência. As turmas mais novas iam à rabeira, humilhação das humilhações. O descompasso do marchar sem quase ouvir a fanfarra fazia às últimas da fila bater o pé direito atrasado, depois do bumbo, para zombaria dos que viam o desfile. Dava vontade de ser mais alta e bonita para não precisar fechar o desfile, melancolicamente. Este dia nunca chegou, mesmo quando, no ensino médio, desfilei duas vezes pelo Colégio Marista São José.

Uma coisa era imutável: todos os anos fazia um calor de brasas. Diferente de hoje, um dia frio para os nossos padrões, com 18 graus às 10 horas da manhã. Isso me fez sentir saudades da minha mãe, do seu canto e do rufar dos tambores da minha adolescência de menina feia e sem ilusões. Acaba que o mundo me deu coisas que eu nunca almejei. Esta é a vantagem de não ter formosura. Espera-se pouco e quando se luta o suficiente, se tem mais. Agradeço aos desfiles, nos quais meu lugar era a rabada. Isso me ajudou saber qual era o meu lugar no mundo. E onde eu queria chegar.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


Um comentário:

  1. Caramba, Mara. Fui sugado pelo túnel do tempo e me vi em fila defronte à bandeira a ser hasteada, com fitinha de cetim verde-amarela presa com alfinete de fralda no distintivo da escola. Grato pela patriótica viagem de volta!

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