Necrofilia
* Por
Marco Albertim
Não fosse o costume de
Ramiro na remoção de esqueletos, depois de escavar covas, deparar com o
estranho entre os túmulos teria sido resultado da erosão em uma cova rasa,
deixando escapar o morto que ainda não dera o último suspiro. Ramiro, andando
no corredor comprido do cemitério, entre blocos de gavetas tumulares de um lado
e de outro, apoiando no ombro direito o cabo da enxada, deu de cara com o
estranho.
O homem tinha bermuda
com beiras em fiapos; a cor há muito desbotara e confundia-se com o cinza
descaído dos blocos de túmulos. A camisa aberta tinha a mesma ausência de cor.
O rosto magro, moreno, com narinas acesas feito orifícios de escape,
salientava-se sob os cabelos estirados com esforço; logo abaixo do cocuruto os
cabelos se eriçavam iguais à crosta de um cupinzeiro. O homem tinha perto de
sessenta e dois anos, apoiava o corpo magro numa bengala de alumínio com
encosto para o braço. Um dos olhos, o esquerdo, sumira, deixando o oco do olho
coberto por um emplastro redondo, com uma largura tão miúda quanto a órbita
invisível.
Sem se assustar,
arrastando devagar as pernas curtas e sem queixa no rosto largo por conta do
tronco grosso feito um caixote, Ramiro estacou:
- Não é uma alma
penada. Mas pelo rosto curtido, o olho sumido e o corpo se acudindo num gancho
de alumínio, bem que vosmecê se parece com um desemparedado escorraçado da
sepultura porque não deu ouvidos à última oração dos parentes.
- Estou morto há cinco
anos...! - desentranhou o estranho.
Carece dizer que às
cinco da tarde, a sombra pardacenta sob os oitizeiros entre um bloco e outro de
gavetas, em muito encobria a rabugice no rosto do estranho; talvez ele se
valesse do crepúsculo para tornar-se ainda mais infausto.
- Fui enterrado nesta
gaveta - apontou para o túmulo do meio, o de baixo, num bloco com seis gavetas,
três em cima e três em baixo. - Hoje, o que o senhor está vendo, é o que resta
de minha mortalha.
O coveiro mirou-o de
cima a baixo, viu que o homem não estava descalço nem usava alpercatas,
tampouco um par de sapatos outrora de couro lustroso mas àquela altura com o
solado e o couro estropiados. Tinha, amarrados com força aos pés ainda ágeis,
um par de tênis escuros com os bocais cobrindo os tornozelos; empoeirados e
úmidos, como se o homem tivesse pisado num charco escuro, da mesma cor dos
lados dos tênis.
- Não digo que vosmecê
esteja completamente vivo, porque seus olhos não têm lume e de sua boca sai um
fedor de enxofre. Mas o que lhe resta de vida, é o sopro de um defunto mal
comido pelos vermes. Vosmecê tem parte com quem aqui no cemitério?
O homem voltou a
apontar para a gaveta. Ramiro olhou para baixo. Sempre passava por ali, mas
nunca se dera o trabalho de memorizar o nome de algum defunto ou defunta, a não
ser que, na rua em que morasse, alguém pedisse para verificar o paradeiro de um
defunto sumido. Ramiro olhou e distinguiu as letras escuras se apagando na
fronte da gaveta - Severina Augusta de Lucena Borges - 1960 - 2010 - Deixou
viúvo o sargento do Corpo de Bombeiros - Zoroastro de Lucena Borges.
- Como o senhor tá
enterrado aqui? O senhor baba feito visgo de verme roedor. Mas o zumbido de sua
fala, que não dói nos ouvidos mas se entranha no juízo de quem ouve, ainda
assopra que nem agouro vindo do fim do mundo.
- Vá nos assentamentos
do cemitério. Meu nome consta como morto.
- O senhor é mesmo uma
praga. Vá embora daqui. Isto aqui é um lugar de repouso. Respeite o sossego de
Dona Severina Augusta.
- Severina Augusta era
minha mulher. Eu sou o sargento do Corpo de Bombeiros que ela deixou viúvo.
- E está vivo ainda!
Arre égua!
Ramiro seguiu o caminho
do corredor, agora empunhando a enxada porque tirara-a do ombro para melhor
conversar com o estranho. Às seis da noite, voltou pelo mesmo caminho. Não
encontrou o suposto morto, mas sorveu em frente ao túmulo de Severina Augusta
de Lucena Borges, um cheiro pestilento de carnes não apodrecidas, mas de uma sujeira
há muito entranhada em tecidos da pele humana ou de andrajos.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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