Conversando com a minha mãe – Seu Pio
* Por
Urda Alice Klueger
(Para
seu Higino Pio e para Wanderley Caixe)
Sabe, mãe? Eu tinha um
amigo que se chamava Vanderley Caixe. Nunca o encontrei pessoalmente;
tornamo-nos amigos através da Internet. Era um incansável lutador, vítima da
última ditadura que o torturara barbaramente, advogado, poeta – tenho um livro
com seus poemas na minha biblioteca. Eu acho que a mãe já tinha partido quando
ele começou a publicar sistematicamente, um a cada dia, os horrores acontecidos
naqueles tempos em que eu acabava de crescer, quando a ditadura militar
prendeu, torturou, assassinou, sumiu com tanta gente, gente que foi carregada
“num rabo de foguete”, conforme dizia a Elis, se a memória não me falha – a mãe
há de lembrar da música. Depois que publicou todos os casos dos quais tinha
conhecimento, ele os reuniu num blogue, e daí a pouco se foi, também partiu
para outras plagas.
Então, a cada dia eu
lia um daqueles horrores e ficava aturdida, sem quase poder crer que tudo
aquilo acontecera enquanto eu amava os Beatles e os Rolling Stones e
participava de inocentes festinhas no salão paroquial da nossa igreja de Nossa
Senhora da Glória, usando os vestidos bonitos que a mãe costurava para mim.
Eu tinha a noção
histórica daqueles acontecimentos, mas ler caso a caso, detalhe a detalhe, como
o Vanderley Caixe contava, era algo horripilante, e a cada dia eu ficava mais
angustiada e revoltada.
Havia uma atenuante
para a minha emoção, no entanto: aquelas pessoas eram de outros lugares, eram
do Rio, de São Paulo, de Recife, tinham morrido no Araguaia, não eram próximas,
embora algumas tenham ficado na minha vida com mais força que irmãs, como
Soledad, enegrecida de tanta tortura, morta dentro de uma barrica com seu bebê
morto aos pés, enquanto o Cabo Anselmo, seu algoz e pai do bebê, continua por
aí fresco e fagueiro como inocente, um monstro para quem eu olho na televisão e
sinto que tenho que vomitar. Mesmo tendo ficado tão próxima de Soledad, no
entanto, ela continuava sendo a Soledad de Recife, fisicamente bastante
distante da minha realidade.
Mas teve um dia, mãe,
em que eu dei com a cara na parede. Pensando que iria ler mais uma distante
monstruosidade da nossa ditadura, esbarro com força na minha infância, resvalo,
caio e chafurdo na minha própria experiência pessoal, e até agora não sei como
se sobrevive a coisa assim: Vanderley Caixe contou a história do seu Pio.
Do seu Pio a mãe se
lembra, seu Higino Pio, o seu Pio da Dona Amélia, vizinhos da minha infância lá
na Praia de Camboriu, que então ainda não se chamava Balneário Camboriu. Eu tenho
as mais cálidas lembranças daquele tempo e do seu Pio e sua casa – comerciante,
sua grande loja tinha o mais maravilhoso departamento de brinquedos que uma
criança pudesse conhecer – pelo menos eu nunca vira nada tão maravilhoso, tendo
em vista que aquele era o único departamento de brinquedos que eu conhecia.
Recordo muito bem de uma carruagenzinha que parecia vinda diretamente dos
contos de fadas e que durou algum tempo na vitrine – como eu a queria! Jamais
diria tal coisa para a mãe ou o pai, no entanto – um brinquedo assim era coisa
para alguma princesa, e não para uma criança comum como eu. Mas tenho lá a
lembrança, assim como lembro dos bolinhos de frigideira que comia na cozinha da
Dona Amélia.
O seu Pio era um
comerciante forte da Praia de Camboriu; construiu um dos primeiros edifícios de
lá, a classificação que lhe cabia era de capitalista. Tinha tal importância que
se elegeu primeiro prefeito, quando a praia virou município. E eu lembro, ah!
mãe, como eu lembro, a mãe e o pai cochichando em sussurros:
- Mataram o Pio!
Era o tempo do medo e
vocês estavam acostumados a ele, egressos que eram dos tempos da Segunda Guerra
Mundial, quando se viveu com medo até de falar, nesta minha região onde a
língua não era exatamente a portuguesa. Então cochichavam, mas meu ouvido fino
ouviu aquilo e guardou a lembrança, e por décadas não pensei mais – até que dou
de cara com a denúncia feita pelo Vanderley Caixe!
A ditadura me afetara,
sim, chegara diretamente a mim, à minha emoção, à lembrança da cozinha da Dona
Amélia e da carruagenzinha na vitrine daquela loja tão linda, enfiara um espeto
enferrujado no meu coração e ressuscitara os cochichos da mãe e do pai dizendo
em sussurros:
- Mataram o Pio!
Sim, mãe, mataram o
Pio, o seu Higino Pio da mais linda loja de brinquedos do mundo, mataram ele
mesmo ele sendo o protótipo do capitalista – como? Como? Não estava a ditadura
a perseguir os comunistas?
Ah! Mãe, quantas
mentiras nos contaram a vida inteira! Por sorte, eu tinha na lembrança o
cochicho de vocês, e vocês sabiam mais do que diziam, porque sabiam que o seu
Pio tinha sido matado.
Como tirar esta mágoa
de mim agora, seu Pio? Como poder deglutir esta sensação de infância profanada?
Por sorte, eu tive na
minha vida um amigo chamado Vanderley Caixe, mãe. Por sorte eu não parei no
tempo e estive sempre querendo saber mais. Por sorte não me mantive na
ignorância onde poderia estar agora.
Blumenau, 25 de Setembro
de 2014
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais uma dezena de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
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Ontem, numa reunião do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros, discutindo sobre um livro que relata a história de um homem do campo, posseiro que foi torturado como se fosse comunista, um membro e colega, reformado como coronel afirmou que nunca houve tortura. Que ele era tenente e estava presente. A História pode de repente se transformar em estória, Urda. Que coisa feia você nos contou, e como foi bonito o seu contar. Obrigada.
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