Autossuficiência nossa de todos os dias
* Por
Mara Narciso
O homem é um ser
gregário, e por isso mesmo não deve viver sozinho. Ao nascer é um dos animais
mais dependentes, e morreria em poucas horas, caso não fosse devidamente
protegido. A sociedade está construída sobre uma distribuição de tarefas e todas
as classes de trabalhadores são indispensáveis. Cada um faz uma parcela do
trabalho, e assim se vai construindo o mundo, que se edifica sobre os que
vieram antes.
A construção pessoal,
além de depender dos outros para amparar aquele que cresce, seja a família,
sejam os amigos, vai sendo feita à imagem dos pais e professores, que educam e
ensinam o caminho do bem (ou do mal, dependendo do caso). Pais não são símbolos
de virtude, por definição, mas deveriam ser para se tornarem um bom espelho
para seus filhos. Aprende-se a copiar, mimetizar, imitar. Depois vão surgindo
as características de cada um. Ainda assim, no inicio da vida adulta ouve-se
que se tem de procurar um par, a “tampa do balaio”, para que se complete, para
que se torne inteiro. A maioria aceita isso como verdadeiro, e coloca no outro
quando não todas, quase todas as expectativas de realização e equilíbrio.
Contraditoriamente, é
também ensinada ou estimulada a independência, para que a pessoa possa ser
autônoma, completa e livre. Quando o relacionamento sofre uma avaria, é preciso
consertá-lo ou abandoná-lo. Acontece a separação, e a dor nesse jogo rasga a
carne. Os que estão próximos correm para dizer que a perda não foi ruim,
arranjando defeito naquele que foi embora. São atitudes ambíguas. Para que isso
não seja dominante, o melhor seria estimular a liberdade e autossuficiência,
com a capacidade, se não total, quase total para se viver só. No entanto, lá no
íntimo, as pessoas não querem ficar sem ninguém. Quando conseguem, já mudam de
ideia. Querem formar outro par.
Mas, quanto à
autonomia, nada que se aprende é inútil, desde lavar, passar, costurar,
cozinhar, cuidar de crianças, alguma arte ou trabalho remunerado. Saber é moeda
corrente, sendo importante conseguir viver só. Ganhar o dinheiro, saber
comprar, equilibrar-se nas finanças e tentar poupar para dias mais difíceis.
Esse lado é possível de ser aprendido. O complicado é o lado afetivo. A maior
parte quer ter um amor, o afeto, o carinho de alguém que não pode ser
substituído por filho, pais, ou qualquer parente ou amigo. E dizem as pesquisas
que quem tem um bem para chamar de seu vive mais e melhor.
Os que já sofreram de
mal de amor, uma decepção mais graduada vão fugir de outra situação amorosa, e
principalmente hoje, quando o mundo fez as pessoas mais impacientes, acontece
com a maioria o dissabor de um fim. Então, vem a fase madura em que a pessoa se
encontra só. Alguns desistiram, mas outros querem encontrar alguém. Ainda
assim, quando chega o fim-de-semana, que é o período de expectativa e
conseguinte frustração, quando acontecem três noites só e em casa, a pessoa
pensa em investir mais para conseguir um amor. Por outro lado, surge a
possibilidade da autossuficiência em todos os níveis, seja emocional, afetiva
ou sexual, em alguns casos com a sublimação dessa função humana tão pouco
compreendida.
É possível viver só,
mas é frustrante vivenciar esse vácuo afetivo. Não se quer abrir mão de uma
companhia, um abraço, uma palavra de carinho que só um amor pode dar. Quando
aflito, é bom se ter alguém. Ajudas continuam indispensáveis. Ainda que se seja
capaz de sobreviver sozinho, em relação à sociedade maior, à cidade, por
exemplo, é preciso usar o serviço dos outros, por mais habilidoso que se seja.
Assim como o mau pagador, que quando quer pagar não tem dinheiro, e quando tem
dinheiro não quer pagar, pode-se querer a autossuficiência, e não poder ser
independente, e quando se é livre, não se querer sê-lo mais. Sem demagogia,
como viver e principalmente morrer sem a presença dos outros?
*Médica endocrinologista,
jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto
Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Concordo com tudo, Mara. No sentido macro, social, antropológico. Já pessoalmente, devo admitir que em boa parte do tempo sou uma ótima companhia para mim... Abraços.
ResponderExcluirAutonomia é bom, mas a um cafuné, quem resiste? Obrigada Marcelo, pela passagem e comentário.
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