O
diabo na pele de Doudou Ndiaye
* Por Pablo Uchoa
de Londres
E o mundo, paranóico com o diabo
da gripe das aves. A gripe aviária chegando no velho continente e já há quem
diga que estamos diante de uma nova pandemia. Mesmo aqui na Inglaterra, onde os
instintos carnívoros normalmente prevalecem sobre as elucubrações da imprensa,
a pane fez algum efeito.
“Ó tempora, ó mores”, cada tempo com suas paranóias, digo sempre.
Checo o canto do monitor e vejo Doudou Ndiaye me saudar em francês:
“Salut!”
Sei, sei. Ctrl+Alt+Del, Doudou, Ctrl+Alt+Del:
“Finalizar tarefa”.
Nesse momento, estou a ponto de
levar meu antivírus à loucura. Mensagens do software anti-espiões me avisam que
um programa qualquer tentou acessar a Internet e teve o acesso negado.
Creia-me, o vírus da gripe
aviária nem chega perto disso.
Doudou desaparece da minha vista
por algum tempo, mas sei que voltará. Há dois dias, travamos uma lide de
cavalheiros.
Não costumo abrir mensagens
desconhecidas que chegam pelo Outlook, mas por acaso o cursor pousou sobre o
cabeçalho da que chegou com seu nome. Apressei-me em apagá-la, mas...
“Oh, well, too little too late”, sentenciaria aquele inglesinho
safado que me vendeu este computador. Ou muito mais pomposamente, “Après nous, le déluge”, depois de nós o
dilúvio, como ensinou Madame de Pompadour, quando viu o exército francês ser
massacrado pelo prussiano em 1757.
Pois os exércitos inimigos de
hoje são esses insetinhos xeretas chamados cavalos de tróia. Aparentemente
indefesos, mas, numa época em que a informação viaja à velocidade de um
foguete, essas pragas eletrônicas se multiplicam à oitava, décima potência no
primeiro segundo de infecção. Se é fácil imaginar um arquivo, uma pasta, um
computador imobilizado num ataque cibernético, por que não uma rede, uma
empresa, um banco, uma cidade inteira?
Com este tipo de inimigo há de
lutar sem olhar-lhe nos olhos. Como Perseu desafiando Medusa, a mitológica
mortal filha de deuses, mãos de bronze e cabelos de serpentes, cujo sangue
tinha a propriedade de matar e ressuscitar os seres humanos, e cujo olhar
transformaria em pedra aqueles que o captassem diretamente.
Doudou manda-me emails que tenho
de apagar sem examinar-lhes o conteúdo, mensagens instantâneas que tenho de
finalizar sem clicar sobre elas. Uma batalha à distância, apesar de suas
palavras cordiais: fala-me em francês quando estou num site da França, em
inglês quando navego por páginas inglesas.
Cheguei à conclusão de que – pelo
menos desta vez – Doudou não é uma pessoa. Apenas um vírus poliglota (eles
estão na moda hoje em dia) que se propaga pelo MSN Messenger e, neste momento,
está brincando com minha paciência.
No início, admito, tive medo.
Reforcei meu velho Norton, veterano de guerra, com um software anti-spy de
última geração. Bloqueei Doudou no Outlook Express e cheguei até a avisar, por
telefone, um amigo que seu email servira de inspiração para Doudou criar seu
próprio codinome.
Em algum momento, quando
observava todas as ferramentas de monitoramento de meu computador, confesso que
me senti um general da CIA observando as bases soviéticas durante a crise dos
mísseis.
Ao final, por orientação de um
fórum virtual sobre este tipo de vírus, finalmente entreguei meu Texas. Uma
versão Beta do MSN Messenger havia aberto uma brecha por onde meu amigo
poliglota resvalara. Desinstalei o programa e passei a usar uma tosca versão
online.
Entreguei um braço para ficar com
o tronco, que seja – alguma integridade ainda me resta. Se não posso fazer como
Perseu, que colocou a cabeça inerte de Medusa em exibição sobre o escudo de
Atena, pelo menos tenho a prerrogativa de contar a história. Uma arma tão
poderosa quanto a espada de Hermes.
Doudou Ndiaye, quem sabe o espere
agora em algum site italiano. Quando me alcance uma mensagem no estilo “Ciao, ragazzo!”, travarei com meu
inimigo uma batalha tão épica quanto a dos clássicos, só que num ciberespaço
impalpável como o de Guerra nas Estrelas.
Mas talvez eu dispense as
personagens heróicas de Lucky Skywalker e Darth Wader, gringas, e adapte a
velha batalha dos dois lados da força para uma versão menos glamourosa,
latino-americana, como o título daquele filme venezuelano “Florentino e o
Diabo”. Ou melhor ainda, cearense como minhas origens, inspirada num clássico
da literatura de cordel que até hoje se vê pendurado nas feiras do Cariri, “A
Peleja de Riachão com o Diabo no Sertão”.
(*) Cronista e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra, dedicando-se
a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da Universidade de
Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada de Hugo Chávez”
(Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog 2004.
Nenhum comentário:
Postar um comentário