* Por Daniel Santos
Na manhã de um desses dias úteis em que nos apressamos a caminho do escritório, enquanto sonhamos com um mergulho no azul do mar, não é difícil sentir na ponta da língua uma pitada de sal, mas isso depende da capacidade do desejo para criar ilusão.
Houve uma vez, no entanto, em que negligenciei o sonho e, mesmo assim, tive a prova mais salgada do quanto a realidade – numa demonstração a mais chã e irredutível – pode nos submergir num outro tipo de azul, esse que resulta da velocidade; principalmente, se estamos em fuga.
Verdade que naquela ocasião saí de casa um pouco atrasado, mas confiava na potência do meu conversível para vencer em minutos o itinerário até o serviço, no centro da cidade, antes que o sol arriasse minha cabeça sob a autoridade cauterizante da sua luz.
Não foi bem assim, no entanto. Mal tomei a avenida principal, para onde afluíam as ruas do bairro, percebi que chegaria atrasado ao trabalho, porque o trânsito estava lento, e isso me fez dar um murro de contrariedade no volante.
Compreendi, em seguida, que, se a solução para aquele impasse não dependia de mim, o melhor a fazer era me pôr o mais à vontade possível e encontrar algum divertimento até tudo se resolver, embora sem descuidar das oportunidades de avançar por entre os outros carros.
De fato, apesar de o conjunto dos automóveis mover-se de maneira uniforme, sempre avante, a síncope de marchas e contramarchas fazia uma fila acelerar, às vezes até rapidamente, enquanto as demais permaneciam imóveis ou em ritmo lento.
Esse era, no entanto, um problema menor, porque o que logo nos inquietou foi, de fato, a claridade fatigante que arremetia de todos os lados e multiplicava sua intensidade através de reflexos nos vidros e nas latarias dos carros que, já então, resfolegavam.
Foi, por isso, um alívio quando a fila ao lado avançou e uma jamanta fez sombra sobre mim durante alguns minutos. Pude, então, afrouxar a gravata, descasar dois botões da camisa, colocar óculos escuros, acender um cigarro e ligar o rádio.
Estava, afinal, como queria e isso me salvava do mau-humor, embora não me resguardasse inteiramente: ao olhar pelo retrovisor, a imagem da jamanta, ou o que quer que fosse aquilo, me trouxe um desconforto, a princípio, inexplicável.
De cor azul-acinzentado, essa mesma dos carros da polícia militar que levam presidiários da cadeia para o fórum ou de uma carceragem para outra, a jamanta não tinha forma definida na parte da frente. Tanto assemelhava-se a um ônibus quanto a um caminhão.
A parte de trás era ainda mais estranha. Feita de madeira sem qualquer refinamento de marcenaria, praticamente uma tábua pregada grosseiramente na outra, lembrava sem tirar nem pôr um curral, uma dessas carroças que transportam bois para o matadouro.
Era, enfim, um veículo feio, de imponência sinistra, quase assustador. Parecia parte de uma frota clandestina que se ocupava de negócios escusos na periferia da cidade, mas, até prova em contrário, devia ter documentos legais; do contrário, não estaria ali àquela hora.
Pois, a fila ao lado avançou mais e a jamanta passou por mim, deixando-me novamente à mercê do sol, que cravava seus ferrões em minha nuca como um crustáceo esfaimado e furioso, empenhado em me devorar, pouco a pouco, até a mais plena saciedade.
Tive, então, de levantar a capota e ligar o ar refrigerado, mas esse súbito conforto não dispersou minha atenção daquele estranho veículo que, agora à dianteira, limitava minha visão às laterais e, assim a reboque, eu ia para onde ele ia, sem autonomia nem noção de destino.
À minha frente, impunha-se uma carroceria de tábuas mal dispostas, com pregos aparentes e algumas frestas por onde o sol vazava. Pude perceber, por isso, que não havia nenhum animal ali dentro, que talvez estivesse voltando do matadouro ou ainda ia pegar seu carregamento.
E, tão atento estava a esses detalhes, que quase perdi a oportunidade de ultrapassar a jamanta, quando uma lacuna se abriu na fila ao lado e nenhum carro avançou, mas reagi a tempo e ocupei aquele precioso espaço. Antes assim, porque o trânsito fluiu e logo me adiantava.
O desconforto tem, no entanto, a capacidade de alongar tempo e espaço: embora acelerasse sempre que possível, a avenida nunca terminava e, ali apenas há meia hora, tinha como perdida a manhã inteira, já imaginava o pito do chefe e o desconto no salário ao final do mês.
Essa sensação de perder tempo demais ficou ainda mais forte ao perceber a reaproximação da jamanta pelo retrovisor e, pela primeira vez, admiti para mim mesmo que aquele estranho veículo se havia tornado uma referência de destaque em meio ao caos do trânsito.
De fato, ela se aproximava, veio vindo, veio vindo e emparelhou com meu carro. Observei, de novo, como o sol trespassava a carroceria qual serrote de afiado gume e expunha nesgas do seu interior. E nesse interior – testemunhei com sobressalto -, algo se moveu!
Pensava, antes, que nada havia ali, nenhuma rês, mas uma coisa viva, uma criatura, se debatia entre aquelas tábuas. Para observar melhor, abaixei o vidro do carro, aproximei o rosto e vi, pelas frestas, que um outro olho já se fixara em mim!
Era um olho castanho como o meu, de cílios curtos, com pequenas veias avermelhadas, mas sua íris expandia-se na agonia de uma procura, como se quisesse dizer algo de muito urgente ou há muito calado. Sim, naquele olho havia uma pergunta ... mais desconfortável que o calor!
Não sustentei o peso desse olhar, que me pareceu, a princípio, uma ameaça, uma afronta. Por isso, afastei o rosto da carroceria e me endireitei dentro do carro, acendi outro cigarro e mexi no dial, a ver se sintonizava uma dessas emissoras de rádio barulhentas.
Mantinha-me ocupado com a única finalidade de disfarçar o próprio incômodo diante de algo que me enfrentara e – eu sabia! – estava, naquele mesmo momento, me observando, estudando cada um dos meus gestos, divertindo-se, quem sabe, com a minha perturbação.
Mas a jamanta moveu-se, avançou mais um pouco e olhei de lado: a criatura andava agarrada às tábuas, de maneira a se manter sempre a meu lado! Tive também que avançar e ela veio me acompanhando, parecia mesmo disposta a me seguir como se pronta a dar o bote.
Essa sujeição, a que não conseguia responder sequer com um desaforo, foi me aborrecendo aos poucos e, às tantas, já bastante contrariado, enfrentei aquele olhar. O susto que levei em seguida fez com que tirasse o pé do acelerador. A criatura havia enfiado uma das mãos pelas frestas e eu não tive dúvida: era a mão de um homem!
A mão de um homem! De um homem! Dedinhos tortos, unhas encardidas, sem anéis, apenas sangramentos superficiais, aquela era a mão de alguém ... talvez fosse menos que uma pessoa, um excluído, ser sem importância, cuja falta ninguém sentiria.
E ele me olhava! A dois palmos do meu rosto, o dele mantinha-se na espreita, me examinava, talvez estivesse até sentindo o discreto aroma da lavanda que trazia na gola da camisa de seda, e essa possibilidade me incomodava, não queria que ele obtivesse informações a meu respeito.
Agora, eu suava de tensão. O assento, anatômico, feito sob medida para não incomodar minha coluna, parecia estranho, desajeitado, uma superfície a que eu não mais aderia com tranqüilidade.
Acendi outro cigarro e traguei fundo, soltei grossas baforadas como a expelir da alma todo o incômodo que experimentava naquela inesperada companhia e, quando quase terminava de fumar, o tal imiscuiu um de seus dedinhos pela fresta pedindo a guimba!
Fiz que não entendi, principalmente, porque me sentia obrigado a atendê-lo. E quem era ele para me determinar o que fazer! Por isso, mais aborrecido ainda, atirei longe o cotoco do cigarro com um peteleco e cuspi de maneira arrogante fora do carro para evidenciar ao tal que mantinha absoluto controle sobre mim mesmo. Além do mais, fizesse o que fizesse, tínhamos entre nós dois as tábuas da carroceria e o vidro da minha janela, de maneira que jamais poderia me tocar. Definitivo: ele não era uma ameaça!
Quanta ilusão! Ao perceber que jogara fora o que ele tanto queria, pôs-se a saltar feito um endiabrado, atirando-se contra as tábuas e urrando como um desses bichos de quatro patas! Mais: no auge do acesso de fúria, esmurrou a madeira sem medo de ferir a própria mão!
Aquele estampido seco, mas grave, abalou meus tímpanos como se carregasse a mesma autoridade de um trovão. Engoli em seco e avancei mais uns dois metros, mas ele me seguiu de dentro da carroceria e desferiu outro soco, acompanhado de novo grunhido, um som roufenho, intimidatório, que subia de desvãos para mim desconhecidos.
Em seguida, da mesma forma como antes fizera, avançou um, dois dedos na minha direção, e entendi perfeitamente: ele pedia fumo! Pudesse, acelerava e desaparecia dali, mas o trânsito continuava na mesma e, sem jeito, acuado, constrangido por uma presença que entendia de intimidações, lhe estendi o maço com apenas um dos cigarros para fora, conforme se costuma fazer socialmente.
Com surpreendente habilidade, o tal se apoderou do maço inteiro num golpe de mão rápido e eficiente! Não pediu fósforos, que os tinha consigo. Pois, acendeu o primeiro cigarro e, de lá de dentro, transbordou uma gargalhada cavernosa que significava vitória e desprezo sobre mim.
Eu o xinguei em voz baixa, mas ele respondeu com nova gargalhada. Nada dizia, não emitia palavras, porque talvez já esquecera de falar ou abdicara o verbo, que não tinha qualquer valor no mundo onde vivia: o mundo dos sem-voz.
O trânsito fluiu, afinal, e acelerei em direção ao centro, onde, para despistar, tomei uma série de ruas até chegar ao serviço. Já fora do carro, as mãos ocupadas com paletó, pasta e chaves, estaquei perplexo: a jamanta dobrou a esquina e crescia na minha direção!
Passou por mim como um bólide, mas, ainda assim, e sempre habilidoso nos seus atos, o tal sujeito encardido soltou uma cusparada que atingiu em cheio o vidro do conversível. Essa mancha, ao menos, tive de limpar. Cheguei ao serviço com tamanho ar de derrota que o chefe abriu um sorriso encorajador e me saudou: “Bom dia!”
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.
O pequeno que se torna grande em nossa cabeça, mesmo quando não queremos permitir, ele cresce.
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