quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Zapping

* Por Marcelo Sguassábia

Hora de pensar, pensar. Hora de não pensar, ligar a televisão - essa fabulosa caixa hipnótica. Aperte o power do aparelho e acione o off do cérebro. Renda-se ao vício paralisante, entregue-se ao esvaziamento mental.

Mas a culpa não é toda da TV em si. Há todo um clima ao redor que induz ao não-pensamento: o cobertor e sua pelúcia acolhedora, a meia-luz do ambiente, a musculatura relaxada - tudo isso junto já é um pré-estado Alfa. Uma vez nesse estupor, é assistir ao desfilar de pastores em seus púlpitos, calouros se esgoelando, falsas loiras saracoteando seus predicados de silicone. Sem falar dos televendedores, a uma velocidade de oitocentas palavras por minuto, madrugada afora apregoando de títulos de clube a aparelhos ortodônticos.

Mas o ritual nem sempre foi assim, indolente e passivo. Tempo houve em que era preciso ginástica para gozar das delícias televisivas.

Quando a TV não pegava, os fantasmas apareciam ou os chuviscos aumentavam, deflagrava-se uma complexa operação que envolvia no mínimo duas pessoas. Uma plantada em frente à caixa, a outra virando o cano da antena, no quintal da casa.
- Melhorou?
- Não!
- E agora?
- Continua ruim.
- Assim tá melhor?
- Espera um pouco...volta pra onde estava antes.
- Assim?
- É.

Dois artefatos, hoje em desuso, orbitavam em torno dela: o conversor de UHF e o regulador de voltagem, também conhecido como transformador. Controle remoto não tinha. Nem precisava - eram só cinco as opções disponíveis. A então TV2 Cultura (canal 2), a Tupi (canal 4), a Globo (canal 5), a Record (canal 7) e a Bandeirantes (canal 13).

Com o advento do cabo e das miniparabólicas, a ordem é zapear. Então...

(zap)

Você pode perder até seis quilos em duas semanas. E não é só isso: fazendo agora seu pedido você ainda ganha este maravilhoso...

(zap)

- Mas me diga uma coisa, dona Antonieta. E agora, como é que está sua vida hoje?
- Ah, hoje o meu lar é abençoado. Como do bom e do melhor, tenho 2 padarias, 3 postos de gasolina...

(zap)

- Chegou a hora de você saber de toda a verdade.
- Onde é que você está querendo chegar? Do que você está falando?
- Maria Helena... Maria Helena... é sua filha!

(zap)

Só seis parcelinhas de setenta e quatro e cinqüenta, no cartão.

(zap)

Ohhhhh yes.... ohhhhh... hum, hummmm... oh yeeeeeeessss... ahhhh!!!!

(zap)

Foi sem querer querendo!

(zap)

Daqui a pouco a gente volta. Não sai daí.

1284 zaps depois...

Os olhos pesam, a cabeça pende molemente para o outro lado da almofada. A mão deixa cair o controle no chão. Aí você acorda, assustado com o barulho. Desliga a TV, apaga a luz, se ajeita sob as cobertas. Tarde demais: o sono se foi. Enquanto ele não volta, você liga a televisão.

• Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).

Um comentário:

  1. Perfeito, numa exata descrição da indolência e apatia quase total do telespectador e o famoso efeito da agulha hipodérmica. Esses maus-hábitos nos fizeram engordar ainda mais.

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