segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Também a Deus pode-se dizer não, um dia

* Por Daniel Santos

Quando caí doente com a terçã, meus pais se revezavam à minha cabeceira com medo do pior. O dinheiro não dava para os remédios e o médico só de quando em vez aparecia no posto para as consultas de praxe.

Minha mãe intimou às santas de sua devoção que me devolvessem a saúde e o pai, fraco para assuntos de doença e morte, estendia sobre meu leito um olhar meio desespero, meio desamparo, que nem cão sem dono.

Ficava ali com a mão no queixo, inapetente, olhando para os pés como se, a qualquer momento, como que por milagre, eles lhe pudessem ensinar o caminho da minha salvação, mas fato é que eu só fazia definhar.

Na pior fase da doença, não tinha sequer força para abrir os olhos, os músculos raro respondiam e, de resto, toda a aparência metia medo a qualquer: vingasse, correria o risco de ficar meio bobo o resto da vida!

Meu pai não suportou a possibilidade. Como se eu fosse ainda um bebê, me pegou no colo, me deu umas sacudidelas e me levou até o terreiro “para tomar ares”. E, olha, que eu era já cavalão dos meus 12 anos!

Pois, ainda assim, o velho dizia “filhinho, filhinho, abre os olhos, sente o cheiro das laranjeiras”, mas eu nem nada, se bem que lá no fundo me agradasse o carinho do caboclo xucro que sempre me tratara na dureza.

Foi preciso eu adoecer para ele mostrar o quanto seu coração pulsava por mim, a ponto de ouvi-lo choramingar durante as insônias em que minha mãe, pesarosa, se acabava em rezas, pedidos e promessas.

Numa dessas noites, abri os olhos e percebi que uma luz azul descia da parede da sala e avançava como uma mortalha até minha cama. Era o quadro da Santa Ceia. E, debaixo dele, meus pais vergados em súplicas!

De um salto e com toda a heresia de que era, então, capaz, ergui meu punho contra Deus que ousava arriar na servidão quem seria capaz de dar a vida por mim. Assim, na defesa do amor de meus pais, eu me curei!

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

Um comentário:

  1. A Medicina e o médico não raro eram um pouco magia e um pouco adivinhação. Tudo poderia acontecer, inclusive nada. A cura se deu por que estava encerrado o ciclo da malária. Muito bem contado, de forma cortante, como sempre.

    ResponderExcluir