domingo, 23 de dezembro de 2012

Uma surpresa no caminho

* Por Harry Wiese

(Conto de Natal)

O sol brilhava forte sobre o Vale do Itajaí. Era dezembro, antevéspera de Natal. O trem vinha engolindo a mata e as plantações beira-rio, beira-estrada, como uma cobra engole sua presa-anfíbia no mais inocente ritual determinista.

A “Macuca”, a grande locomotiva, expelia uma fumaça meio preta e nervosa fazendo com que a temperatura aumentasse ainda mais. Às catorze horas partira de Blumenau, no auge do calor. Agora, quase ao cair da tarde, na Estação de Subida, a temperatura elevada ainda persistia, sem brisa e sem vento. Logo chegaria à Estação Hansa, em Hammonia. O apito estridente da locomotiva já anunciava a chegada.

Quando os primeiros colonos se instalaram em Hammonia no início do século XX, só havia uma estreita estrada, um picadão frágil repleto de buracos e valas. Agora, com orgulho, admiram a estrada de ferro, produto do trabalho, persistência e ousadia. Hammonia conseguira conectar-se ao mundo.

Herbert Longen lançou um olhar para as montanhas, para o rio e para a ponte, monumento de arte, toda de ferro, numa terra ainda rústica e quase adormecida. Corria o ano de 1910. Apanhou suas bugigangas entre as quais se encontravam os presentes de Natal comprados em Blumenau para a esposa e os filhos, com as economias feitas durante o ano. Momento depois, calado e sozinho, deu as costas ao trem cujos ruídos ainda teimavam em persistir em seu cérebro. Apanhou seu cavalo que deixara num pasto de manhã e iniciou sua viagem rumo a Nova Breslau, localidade bem distante de Hammonia, onde comprara uma propriedade no meio da mata virgem. A viagem, através de picadões e trilhas no meio da floresta, para cortar caminho, mesmo assim ainda era longa e cansativa.

A noite o surpreendeu em Nova Stettin, núcleo colonial recém-constituído e localizado entre Hammonia e a sua propriedade. A lua cheia já despontou no alto dos morros. O cavalo ainda ia galante passo a passo e Herbert mantinha-se firme na sela e nos pensamentos. Pensava nas maravilhas de Blumenau, no trem, na cerveja na Estação de Aquibaban, no progresso vindo em passos ligeiros à colônia e nos presentes de Natal, que mantiveram sua mente em plena atividade de gozo e regozijo. Ainda havia a mulher e os filhos a quem amava muito e que por eles fora a Blumenau comprar presentes.

Depois de uma hora e meia de montaria, embrenhado no mato, ora mata virgem, ora capeirão, ora um descampado, Herbert já pensava lento como lento caminhava seu cavalo. Pensava quase nada e o cansaço era uma carga quase insuportável.

De repente o cavalo assustou-se. Um pequeno tremor passou-lhe pelo corpo, mas logo voltou à normalidade e novamente, passo a passo seguiu sua procissão solitária. Durante o pequeno incidente o luar tornou-se forte e iluminou intensamente a Serra do Mirador e o vale. A oeste, na linha do horizonte, formaram-se nuvens grossas e escuras.– Se tivermos sorte, chegaremos a nossa casa em duas horas – murmurou para si mesmo e para o cavalo.

E eis que o cavalo deu sinal pela segunda vez. Herbert apanhou a espingarda e ficou atento. A circunstância merecia cuidado. Ele confiava na sensibilidade e inteligência de seu animal. O perigo não estaria distante dali. Ainda havia onças na região, as temidas onças-pintadas. Que mais poderia assustar alguém nesta travessia noturna?

Quando se aproximou de um descampado, um pasto encravado na mata, com numerosos bovinos, percebeu que ali se desenrolava o acontecimento que o cavalo percebera com muita antecedência. Um touro forte e feroz protegia um rebanho de vacas e bezerros de uma onça-pintada que elegantemente rodeava os animais, preparando-se para o bote derradeiro, com vistas a uma farta refeição. Herbert assustou-se, mas permaneceu parado para esperar o desfecho da luta. Não era hora de disparar tiros. A onça rodeava o touro que espumava e berrava com violência. Os berros pareciam um misto de raiva e desespero. O cavalo que percebera o perigo antes não se mexia. Aliás, nada se mexia. Todos aguardavam o final da luta.

Repentinamente, num vacilo da onça, o touro investiu contra a fera e apertou-a contra um pau que havia sido derrubado há algum tempo pelo colonizador das terras. Voltou a atacar e jogou-a para o alto fazendo-a girar entre os chifres. Um urro agonizante soou pela mata. Vacas e bezerros refugiaram-se ao longe. O touro ainda rodeou sua vilã algumas vezes. Convicto da vitória juntou-se aos seus, aliviado.

Herbert Longen, com o auxílio de um morador solitário, que atraído pelos berros do touro, apareceu preocupado com o destino de seus animais, ergueu a onça com muito sacrifício e deitou-a sobre o lombo do cavalo. A cauda e a cabeça, por pouco não se arrastaram pelo solo. Curtiria o couro e o enviaria, como presente para o seu velho pai na Alemanha, no próximo Natal.

As nuvens pretas e grossas se aproximaram e a chuva não tardou a chegar. Os relâmpagos iluminavam as copas das árvores. Era preciso chegar. A mulher e os filhos estavam esperando e a cada hora que passava o Natal estava mais próximo. E isto era muito bom! Muito bom! Muito bom!

* Harry Wiese é escritor que reside em Ibirama - SC. É autor de vários livros, dentre eles A sétima caverna, romance premiado pela Academia Catarinense de Letras.

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