terça-feira, 27 de março de 2012



Seu Chico e os sonhos

* Por Fausto Brignol

Acordei de manhã cedo e fui até a praça para ouvir os passarinhos. Encontrei o seu Chico no seu banco favorito, chimarreando. Parecia distante, divagando. Cheguei perto e cumprimentei. Abriu-se em um sorriso.

- Até parece assombração, aparecendo de repente – falou. – Mas senta e vamos matear. Que bicho te mordeu para levantar da cama a estas horas?

- Dormi cedo, seu Chico, foi só isso. Acordei e resolvi dar uma caminhada. Mas aceito um mate.

- E eu, o que me tirou da cama foram os sonhos.

- Que sonhos, seu Chico?

- Tive uns sonhos estranhos. Acordei, me vesti, fiz um mate e resolvi consultar as árvores a respeito. O senhor sabe que as árvores são sábias – embora existam aqueles que gostam de árvore só pra fazer celulose. Gente má, que maltrata a natureza para enriquecer. Estamos aqui para aprender, mas a maioria só pensa em usar os outros para ganhar dinheiro.

- Lá isso é verdade, seu Chico. Este mundo está cada vez mais materialista, deixando as pessoas enlouquecidas, principalmente os ingênuos, que acabam acreditando que ter cada vez mais e mais é a única e principal razão da existência.

- Pois veja o senhor: antes eu pensava que eram só os mais pobres e menos instruídos que alimentavam essa ânsia. No entanto, eles tem razão, passam necessidade, são explorados a vida inteira. Mas agora eu tenho visto gente com dinheiro sobrando e que não pecisaria se deixar envolver por essa volúpia diabólica, “correndo atrás” o dia inteiro – como eles dizem. E correndo atrás do quê? De mais dinheiro, de mais posses, de mais bens materiais. E fazendo isso por quê? – o senhor há de me perguntar. E eu lhe respondo que é por competição. Enfiaram na cabeça dessa gente que a vida é um jogo e os transformaram em aleijados mentais que só pensam em suplantar o mais próximo.

- Mas não são todos, seu Chico, não são todos...

- Concordo com o senhor, não são todos. Calculo que só noventa por cento, por enquanto. Temo que as próximas gerações completem os dez por cento que restam. Os que forem exceção serão considerados loucos. Os que sonham, como eu. Os que sonham nos dois sentidos.

- Mas me conte esses sonhos, seu Chico, se não for pedir demasiado.

- Os sonhos da noite ou os sonhos do dia?

- Os da noite, porque os do dia eu imagino quais sejam.

- Esta noite eu tive três sonhos estranhos e vim me aconselhar com as árvores, e quem sabe foram elas que trouxeram o senhor aqui para eu trocar uma ideia a respeito? Vou contar o primeiro e quero a sua opinião: "Sem perceber, faço a minha cama em cima de uma toca de cobras. Uma delas me morde, mas não é venenosa." O que o senhor acha? Traição?

- Mais que traição, talvez confiança demasiada em alguém, seu Chico. E, apesar de não ter sido picada de cobra venenosa, cobra é sempre cobra.

- Foi o que eu pensei. Às vezes eu confio nas pessoas erradas para algum assunto mais sério... Deve ter sido isso. E, como o senhor diz, picada de cobra é sempre picada de cobra, mesmo que não pareça venenosa.

- Alguma coisa que eu possa auxiliar, seu Chico?

- Nada que a vida não resolva com o passar dos dias, não se preocupe. É um alerta para que eu tome mais cuidado, esteja mais atento. É uma tristeza isso de ter que estar atento com as pessoas, confiar desconfiando... Viver está virando uma arte, o mundo está ficando muito árido.

- Tem cobra pra tudo que é lado, seu Chico. Antigamente, e não muito antigamente, era na base do fio de bigode, do olho no olho, do respeito. Mas me conte os outros sonhos.

- Pois o segundo sonho – e tudo nesta noite passada, veja só... O segundo sonho foi ainda mais estranho, embora eu creia que se relacione com o primeiro: "É uma noite muito escura. Estou pescando com meu pai em um poço muito fundo. Parece um poço artesiano. Pescamos peixes pequenos. Um deles me morde na mão e depois se transforma em morcego."

- Pescando num poço, seu Chico?

- Estranho, não é? Em outras épocas um lagoão pequeno era apelidado de “poço” pelo pescador. Mas, no sonho, era um poço mesmo. Fundo, escuro como a noite, e o meu pai – que saudade que me deu do meu velho pai quando acordei! – estava junto comigo. No sonho, é ele que me atende depois que o peixe-morcego me morde.

- E esse sonho foi depois do sonho da cobra?

- Foi depois, quase em seguida.

- Então tem relação mesmo, seu Chico. E estou tentado a lhe dizer que, apesar das mordidas traiçoeiras, o senhor está sendo bem assistido pelo mundo espiritual. Provavelmente o seu pai esteja junto ao senhor e o proteja nessas horas amargas que ocorrem na vida de cada um de nós.

- Quem diria, não é? Com a minha mãe eu sonho volta e meia, como se estivesse sempre com ela. Mas com o meu pai deve ter sido a primeira ou segunda vez desde o seu falecimento – e olhe que já são passados mais de dez anos! Foi ele quem me ensinou a pescar, e como eram boas aquelas pescarias! Quando eu era bem guri, ficava encarregado, durante a tarde, de tirar os lambaris que serviriam de isca para a pescaria dos mais velhos, de noite. Lembro que certa vez, em um lugar onde o pesqueiro era muito fundo, o meu pai me amarrou com uma corda comprida, prendendo uma das pontas em uma árvore e a outra na minha cintura, com medo de que eu caísse no rio, no afã de pescar os lambaris. Só depois de bem crescido é que fui iniciado nos mistérios de pescador de linha. Mas o senhor deve estar desejoso de ouvir o meu terceiro sonho – e o mais curioso. Desta vez não tem mordida de bicho ou coisa parecida.

- Mesmo que tivesse, seu Chico. Os seus sonhos são muito interessantes. Eu raramente lembro dos meus. Às vezes, quando acordo, chego a pensar que não sonhei.

- Pois eu li em algum lugar que todos nós sonhamos, basta dormir. Alguns, como eu, acostumam a prestar atenção e a lembrar dos sonhos. Mais que isso: a dar valor aos sonhos. Eu deixo um caderno na mesa de cabeceira só pra anotar os meus sonhos. Mas aí vai o terceiro sonho:

“Estou em um lugar onde foi construída uma igreja em estilo moderno, mas foi repudiada pelo povo, devido às suas linhas heterodoxas. Ouço um engenheiro falando. Ele se prontifica com outras pessoas a destruir a igreja e a construir no mesmo lugar uma igreja em estilo antigo. Ao fim do dia eu olho de uma janela e vejo a nova igreja construída. É feia, mas agradável aos olhos do povo.”

- Esse é difícil de interpretar, seu Chico. Deve se relacionar com a ideia de novo e de antigo; com aquilo que é conhecido e confiável e aquilo que é desconhecido e provoca suspeitas. O mais interessante, pra mim, é que o senhor ouviu a conversa e depois, no fim do dia, a igreja nova já tinha sido destruída e no seu lugar tinham construído uma igreja em estilo antigo.

- Tenho pensado muito nesse sonho, desde que acordei, e por isso vim até aqui para me aconselhar com as árvores. Os outros dois sonhos, como o senhor percebeu, tem um simbolismo mais claro, mas esse...

- Está mais parecido com o do poço escuro e fundo, seu Chico.

- Pois é. Pescador não deve pescar em águas turvas; muito menos em poço escuro. Às vezes, querendo um resultado imediato a gente se atira no desconhecido. E acaba sendo mordido. Mas o sonho da igreja, ou das igrejas, pode ter várias interpretações.

- É um sonho no qual o senhor apenas ouve e assiste, seu Chico. Não pode fazer nada a respeito. Os agentes são outros: o engenheiro que se prontifica a destruir a igreja nova e construir outra igreja no mesmo lugar, as pessoas que contrataram o engenheiro que, pela sua narração, o senhor não identificou e o povo descontente com a igreja anterior, que era nova demais para a sua compreensão.

- Pois é aí que mora a coruja! O povo descontente! O senhor sabe que o povo, quando mal orientado, é a parcela mais reacionária da sociedade. Tem medo do novo e se ampara naquilo que já é conhecido e que considera seguro. Como um jovem assustado com a vida e que prefere morar na casa dos pais a procurar novos horizontes.

- Ou como um velho que segue a mesma rotina, todos os dias, para não perder as referências conhecidas, até o momento em que não procura mais novidades e se conforma com a mesquinhez da sua vida.

- Um povo assim é um povo morto – o senhor há de convir.

- Sem dúvida, seu Chico. Morto porque não deseja mais do que aquilo que lhe é oferecido. Acostuma-se a apenas aceitar, aceitar, sem perceber que ele, o povo, é a grande maioria e deve ser o agente das transformações sociais, e não uma grande massa ausente e tutelada.

- Pois eu me lembro que tivemos um povo consciente antes de abril de 1964. Um povo que estava fazendo as reformas de base, a reforma agrária, o método de educação de Paulo Freire era aplicado nas escolas – e Paulo Freire era o ministro da Educação de João Goulart.

- Quanta diferença para os ministros de hoje em dia, seu Chico. O senhor conhece algum que seja minimamente inteligente ou corajosamente revolucionário?

- Eu conheço vários que já deixaram o governo por suspeita de máxima corrupção e os que ficaram são cordeiros mansos que só desejam os lucros do cargo.

- Esta não é exatamente uma igreja nova, não é seu Chico?

- Longe disso! Esta é uma igreja estilo República Velha, com direito às mesmas corrupções e troca de cargos. No máximo, uma pintura para esconder a fachada carcomida. A igreja nova eles destruíram em um dia, no Dia dos Bobos, e ainda disseram que o povo é que estava descontente. Foi a grande mentira do dia.

- E essa grande mentira continua até hoje, seu Chico. Será que o engenheiro que o senhor viu no sonho - aquele que se prontificou a destruir a igreja nova e a construir, no mesmo dia, uma igreja em estilo antigo – não estava fardado?

- Não deu pra perceber. Mas hoje não faria a menor diferença.

- Já tivemos um Brasil, seu Chico.

- Que está sendo vendido aos poucos. Também já tivemos um povo lutador.

- Que hoje luta nos campos de futebol. E como luta!

- E dança muito no carnaval.

- Se dança, seu Chico! Dança todos os dias.

- E cada vez dança mais!




• Jornalista e escritor

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