quarta-feira, 21 de março de 2012







Damas do dia

* Por Marco Albertim

Elas sentam-se, sossegam na ignorância que o mundo lhes vota. O mundo é grande. Não têm ideia das acomodações do Restaurante Leite; no salão o ar é tão depurado quanto escuro; tão balsâmico quanto o ramo da erva-doce na superfície de um filé. As luzes de pouca intensidade permitem a cintilação de louças e talheres. Os garçons contraem-se no rigor das jaquetas. O pianista no terno escuro, da mesma cor do piano, instila notas que não escondem o rogo por apetite; no ritmo de garfos e facas a serviço de bocas que mastigam sem dar conta dos dentes.
Elas estão sentadas no lado de fora, nos dois batentes abaixo das janelas do restaurante. Nunca se abrem, as janelas. Para quê? Para descortinar o espectro de mulheres com rostos nus, sem o zelo de cosméticos nas rugas...? As roupas, vestidos de madapolão tingido, bermudas vermelhas, coladas às ancas fartas de gorduras. Não são damas, inda que adamadas para lembrar habilidade no manuseio de caralhos diversos. São damas do dia, na esquina da rua da Concórdia. Podiam sentar-se num dos bancos da Praça Joaquim Nabuco. Mas a praça rareou-se de gente com o fim do Cine Moderno. Há centenas de motos, tão juntas quanto espremidas. Os motoqueiros catam o frete no transporte de eletrodomésticos; não têm olhos para o ralo ajuntamento de putas sem bordel.
Seu nome é Das Dores; assim pensamos porque mostra no rosto um riso murcho, e a boca não tem prumo para esconder o vazio das gengivas; nos morros de Casa Amarela as Das Dores não são poucas. Está sentada sem apurar os ouvidos para fruir o ritmo frívolo do piano que as gretas da janela deixam escapar. Tem os sentidos em moços curiosos nos jogos de cama, ou em velhos que não se rendem à pouca energia. Uma hora da tarde. Ela não almoçou, não pôs na dobra do sutiã o módico michê. Conversa com outras. Das Dores é a mais velha. Não tem inveja da mais moça porque nutre-se na maturidade que os anos lhe dão.
Uma hora depois, sente que os quadris se queixam da fixidez entre a parede de um dos lados e a colega do outro. Levanta-se. Do outro lado da rua, na esquina da loja de eletrodomésticos, o vendedor de frutas dispõe num saco plástico, nacos de abacaxi, de laranja, de melancia. É um seu conhecido, vizinhos um do outro no exercício do ofício de cada um. Lembra-se que trouxera um trocado além do dinheiro do ônibus. Das Dores mastiga inchando a saliência das bochechas. Volta a sentar, dos beiços desiguais escapam pingos das frutas. O madapolão acumula manchas. Antes de engolir a última porção, a amiga mais moça deixa-se arrastar por um moço de óculos escuros, com botas nos pés grandes. Vão para o aposento, um corredor no pavimento de cima de um sobrado, com portas rangentes e luz fugidia. Das Dores, sem sair do batente, ajuíza os poucos móveis dos quartos; frequentara todos. Agora está só. Ouve, remotas, as notas do piano.
Seu nome é Porto; assim pensamos porque todo colunista social tem um patronímico que o liga a metrópoles estrangeiras; William Porto. Está sentado numa cadeira que tem por trás uma das colunas do restaurante. Faz-se indiferente às notas do piano; não porque não goste de música, mas convindo que o ofício impõe familiaridade rotineira com o luxo. Ao sentar-se, o garçom tivera o cuidado de segurar-lhe o paletó, pôr no respaldo da cadeira.
O de sempre...
O garçom curva o dorso, a cabeça; mostra-lhe a carta de vinho. William Porto tem excesso de colágenos nas ancas. Usa suspensórios para encobrir a pronúncia dos peitos, e porque o couro lustroso cintila como os talheres do restaurante. Não tem pressa de sair dali; a página que edita fora fechada pela manhã, sem os atropelos do fechamento à noite. Conversa com outros clientes. Vai embora à tardinha, tem nos sentidos o antepasto no apartamento que lhe fora dado; gratidão do dono da construtora pelos repetidos elogios na coluna do jornal.
Das Dores não espera pela noite. Não abiscoitara o michê, não naquele dia. Tem nos sentidos os retraços de ossos que deixara na geladeira, prontos para a sopa.


*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.

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