segunda-feira, 19 de março de 2012



A mulher que devolveu o papado a Roma

* Por Rubem Costa

Semana passada, no chá promovido pela Academia Campinense de Letras em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o orador convidado foi Almir Reis, criador da coluna Societá do Caderno C editado diariamente pelo Correio Popular. Enquanto o conhecido jornalista brilhantemente discorria sobre a evolução da crônica social em Campinas, aflorou-me à lembrança, por imposição da data, a figura imensa de uma mulher que por seu turno se inscreve na crônica do mundo. Menina semi-analfabeta que, mergulhada no centro de um momento contingente da história, marca presença no mais crítico e dramático capítulo do catolicismo através das eras — “o cisma do Ocidente”. Cisão que, no século 14, se instalara na península em consequência do caos religioso provocado pela disputa do poder. Movimento que levou os teocratas de Roma à humilhação de ver a sede do Papado transferida à força, pela então onipotente monarquia francesa, para a cidade de Avignon, localizada na foz do Ródano, em Provença.

A crueza do despojamento, que perdurou por sete décadas, agredia os brios da cidade eterna, achincalhando o seu orgulho, sem que a nobreza despojada achasse forças para reagir, enquanto o desprezado clero italiano, envolvido em corrupção, não tinha ânimo, nem moral para reclamar. Uma angústia que, em 1376, já se estendia por 170 anos e que valera, para a gente peninsular, um verdadeiro anátema, o irônico apelido de “cativos de Avignon” por emulação da era em que, segundo o Velho Testamento, os judeus estiveram escravizados em Babilônia. E o desprestígio de Roma teria durado muito mais se, paradoxalmente, do rés da humilhação não se tivesse erguido, como anúncio de um novo tempo, o clamor de uma mulher, sonora voz provinda do Convento da Ordem Terceira de São Domingos. Fala de menina, mas inflexível e estertorante na crença, que não se aquietou com o achincalhe que debochava dos grandes da península acrisolados no silêncio imposto pelo temor. Gesto inesperado e surpreendente de uma irmã leiga de apenas 20 anos, mal saída da adolescência que, diante da estupefação geral, se dispôs a caminhar sozinha até Avignon e de lá arrancar, a trancos e barrancos, o pusilânime Gregório XI para com ele, trôpego e velho, machucando os pés nas estradas pedregosas, retornar à Itália e recolocá-lo no lugar onde os Papas sempre estiveram desde a desagregação do império romano.

É nesse instante que se instala um ponto de reflexão para avaliar o poder que exala da coragem da frágil freirinha, irmã leiga, nascida em Siena no ano de 1347. Raspa do tacho da prole imensa de paupérrimo tintureiro chamado Benicasa — que constituíra um lar com vinte e cinco esfomeados filhos — recebeu na pia batismal, talvez pelo milagre da intuição, o nome de Catarina, antropônimo que, provindo do grego, é originariamente designativo de mulher casta. Pura na definição da palavra, assim como lhe foi a vida despoluída de egoísmo, plena de afeto, referta de amor ao próximo, emoldurada de mística contemplação e penitências que não a impediram de arrancar de Avignon pela orelha o pontífice medroso.

A extensão do gesto libertário que então devolveu à península a dignidade teocrática perdida, supera a fronteira do heroísmo nos escritos da Igreja, porque dele, através dos séculos, decorre a instituição da curul, a cátedra perpétua do Estado Pontifício. Eis que, ao retornar a Roma, aconselhado por ela, o pusilânime Gregório XI, que faleceria no ano seguinte, decidiu consagrar o Palácio do Vaticano como moradia pontifical permanente, abandonando Latrão que, há setenta anos, fora a residência palaciana. Urbano VI, que o sucedeu, consolidou a sede que se eternizou através dos séculos, como o centro de convergência do catolicismo ocidental, perenizando no Vaticano o fulcro da teocracia que, ao longo do tempo, iria distender-se como força religiosa dominante no mundo.

Assim, diante do imenso acontecimento que, em verdade, mudou a história da Igreja e a face do próprio ocidente, é imperdoável ter René Fulöp Miller omitido o nome de Catarina de Sena na sua célebre obra Os Santos que Abalaram o Mundo. É certo que o conceito de santidade não é de fácil apreensão, porque decorre do entendimento íntimo do ser e da interpretação mística do gesto como força de animação que transcende da alma em busca do sublime. Para conceituar a santidade, não basta apenas desejar. É preciso trazer acrisolado em si a percepção do divino e o sentido humano da vida.

Em todo santo o que se ouve em essência é a mesma voz de João Batista, voz que clama, palavra escaldante que queima e não se consome, nem os séculos extinguem, mas abrasa e ilumina. Escolher não é fácil, mas não deixa de ser um anseio que vive na alma dos crentes e nos sonhos dos artistas, Van Gogh, depois de ter passado toda a vida pintando camponeses, macieiras e girassóis, emergindo da profundeza de suas convicções atribuladas, confessou no fim da vida que, se lhe tivesse sido dada oportunidade, gostaria de ter pintado figuras de santos. Pena que, morrendo cedo, não tenha tido ocasião de retratá-los. Catarina de Sena, por certo, entraria em suas telas como a “dolce mama” dos aflitos, a mulher de coragem que, no hábito de mantelata branco e negro trazia — na frente e nas costas — um duplo símbolo de redenção: a cruz do santo amor e a cruz da santa ira. Designação de afeto e doação aos que padecem e afirmação de horror à iniquidade que destrói o sonho e aniquila o ser. Uma soma de prodígios que a canonizaram e consagraram (a ela, a analfabeta) como doutora da Igreja, santa nacional da Itália e copatrona da Europa.

• Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.

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