sexta-feira, 30 de março de 2012







Sandices aviatórias

* Por Jair Lopes


A história da aviação é bastante polêmica quando se trata de dizer quem foi o primeiro a construir e voar numa aeronave “mais pesado que o ar”. Para nós brasileiros não há dúvida que o franco tupiniquim Alberto Santos Dumont foi o precursor da façanha, tendo voado 1906 numa geringonça chamada 14 Bis, construída por ele mesmo em Paris. Para os americanos, os irmãos Orwille e Wilbur Wright voaram em 1903, embora eles não tenham registro fotográfico ou impresso sobre o feito, enquanto o voo de Santos Dumont foi amplamente registrado em filmes e na imprensa. Como dizem os bicheiros, “vale o escrito”; ou como os órgãos da justiça determinam: O que não está nos autos não existe. Então para nós, e para todo o sempre, o nosso ASD foi o pioneiro e pronto, quem não estiver satisfeito que mude a história.


Além desse embate por hegemonia aviatória no continente americano, há outras estórias da carochinha que, vez ou outra, aparecem em algum artigo jornalístico ou em livros por aí. Parece que todo mundo foi pioneiro da aviação. Os russos, que não costumam “perder” para ninguém, também tem lá um inventor que em 1889 teria feito um arriscado voo em uma máquina de fundo de quintal e teria morrido no experimento. Na França, o crédito é dado a Clément Ader que teria feito o primeiro voo em uma aeronave impulsionada por motor a explosão e levantando voo pelos seus próprios meios em 9 de Outubro de 1890. Gustave Whitehead disse ter voado em uma aeronave mais pesada do que o ar, por meios próprios, em 14 de agosto de 1901. Esse “Gustavo Cabeça Branca” falhou em documentar seu voo, mas posteriormente, uma réplica de seu Number 21 conseguiu alçar voo com sucesso, indicando tratar-se de uma máquina tecnicamente viável. Lyman Gilmore, outro inventor ousado, também afirmou ter voado em 15 de maio de 1902, embora, como muitos outros, nada pôde provar.


Na Nova Zelândia, o fazendeiro e inventor Richard Pearse construiu um monoplano que alçara voo em 31 de março de 1903. Existem fortes evidências que esta decolagem de fato ocorreu, entre testemunho e fotografias. Porém, o próprio Pearse, num rasgo de honestidade, admitiu que foi um voo não controlado e que havia terminado por chocar-se em um morro após ter voado a um teto de três metros. Karl Jatho voou em uma aeronave mais pesada do que o ar em agosto de 1903. Seu voo foi de curta duração, porém, e a velocidade da aeronave e o desenho da asa fizeram com que o avião não fosse bem controlável pelo piloto, ou seja, a traquitana não poderia ser considerada um avião sob qualquer ângulo. Ainda em 1903, testemunhas dizem ter visto o escocês Preston Watson fazer seus voos iniciais em Errol, no leste da Escócia. Porém, a falta de quaisquer evidências fotográficas ou documentárias faz com que este voo pareça mais outro conto da carochinha.


O engenheiro romeno Traian Vuia também diz ter voado em um avião, e que ele decolou e sustentou voo por tempo razoável, e sem a ajuda de ventos opostos. Vuia teria pilotado a geringonça que ele desenhou e construiu, em 18 de março de 1906, em Montesson, perto de Paris. Contudo, ainda que paire dúvidas se eles existiram de fato, nenhum de seus voos superou 30 metros de distância. Para efeito de comparação, no final de 1904, os irmãos Wright, dizem os americanos, já teriam realizado voos de 39 quilômetros de distância e de 39 minutos de duração.


Muitas reivindicações de voo são estranhas pelo fato de que vários destes deslocamentos alcançaram tão pouca altura, que fizeram os aviões confundirem-se com o solo e não ficou patente se eles estavam voando ou quicando no chão. O pejorativamente chamado “voo de galinha”. Além disso, são controversos também os meios utilizados para alçar voo. Alguns decolaram supostamente por meios próprios, enquanto outros foram inicialmente catapultados para decolagem, e, no ar, continuavam a sustentar voo por meios próprios. Só que “meios próprios” também são controversos nestes casos citados, porque ao atirar uma pedra com estilingue ela “voa” até o impulso inicial se extinguir em consequência do atrito com o ar e ela cair por força da gravidade. Então cadê os meios próprios? Eu diria que a maioria dessas máquinas de fundo de quintal se semelhava a grandes pipas meio desengonçadas que conseguiam se sustentar enquanto impulso houvesse e os ventos lhes fossem favoráveis, algo muito longe de uma aeronave autônoma.


Essa plêiade de arrojados pioneiros estabeleceu um nascimento tão tumultuado que, aparentemente, não se via um futuro definível à frente. Então, é surpreendente que a aviação tenha se desenvolvido até isso que vemos hoje. Imensas aeronaves incorporando o que há de mais avançado no campo de ligas e compostos leves e materiais resistentes às altas temperaturas, à fadiga e ao desgaste; a última geração do mais avançados equipamentos eletrônicos e computadores que praticamente pilotam e navegam sozinhos, de tal modo que a intervenção humana é quase totalmente dispensável; comunicação e localização geográfica global por meio de satélites com precisão de centímetros em certos casos; motores com potência, desempenho e economia de combustível inimagináveis até no sonho mais louco dos pioneiros; desenho aerodinâmico que permitem velocidades até três vezes maiores que a do som; capacidade de carga útil ou de passageiros seguramente de até centenas de vezes maiores que as primeiras aeronaves; e uma proliferação planetal de modo que virtualmente todos os cantos da Terra, habitados ou não, estão ao alcance dessas máquinas com o maior conforto. Isso tudo, além de ser uma arma de guerra formidável, para vergonha dos homens de paz.


Num artigo sobre os avanços da aviação, o cientista Otto Fitzmayer fazendo uma alusão aos níveis tecnológicos que as aeronaves incorporaram desde seu surgimento no século passado, disse: “Se os automóveis tivessem incorporado tecnologias e inovações no mesmo nível que as aeronaves o fizeram estariam hoje fazendo 200 quilômetros por litro, andando normalmente a trezentos por hora e teriam autonomia de trinta mil quilômetros”. É isso aí, o meio de transporte aéreo, além de tudo, só não é mais seguro que elevadores.


• Escritor, autor dos livros “O Tuaregue” e “A fonte e as galinhas”.

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