segunda-feira, 19 de março de 2012



Fuga impossível


O poeta T. S. Eliot – norte-americano de nascimento, mas que adotou a cidadania inglesa – ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1948, que morreu em Londres em 4 de janeiro de 1965, em um de seus versos mais notáveis e eloquentes, constatou, com elegância e precisão, que “o gênero humano não suporta a realidade”. E não suporta mesmo!


Já tratei desse assunto (desagradável, é verdade) e em várias ocasiões. Outros tantos escritores, filósofos, teólogos etc., muito mais gabaritados e renomados do que eu, também trataram dele. Porém, pergunto: a menos que se trate de pessoa com profunda deficiência mental, ou que, por motivo de doença, esteja momentânea ou definitivamente inconsciente, é possível a alguém fugir da realidade? Ouso dizer que não. Não, pelo menos, da mais aterrorizante de todas: a da consciência da nossa mortalidade.


O homem (não sei se feliz ou infelizmente, já que, como dizia o bardo William Shakespeare, “há mais mistérios entre o céu e a terra do que prevê nossa vã filosofia”) é o único animal da natureza que tem consciência de que vai morrer. Por que? Sabe-se lá! Há quem, inconscientemente, sem pensar no que diz, que afirme que gostaria de saber “como” e, principalmente, “quando” vai acontecer sua extinção. Não considero essa ciência prévia um bem. Muito pelo contrário. Se soubéssemos disso, ficaríamos de tal sorte aterrorizados, que não usufruiríamos nada, absolutamente nada da vida. Pensaríamos nisso o tempo todo e a angústia nos paralisaria. A “fuga da realidade”, que T. S. Eliot sugere em seus versos, no meu entender, é apenas essa (a única possível): a de não pensar nesse fim o tempo todo, que ademais é inevitável.


Daí vivermos criando fantasias de todos os tipos. Daí acharmos que o futuro será sempre muito melhor do que o presente e mais venturoso ainda do que o passado. Abstraímo-nos do fato, porém de que nele (futuro), e não no tempo que estamos vivendo (e muito menos no que já vivemos) está a nossa extinção. Quando? Como? Felizmente não sabemos. Esse conhecimento apenas seria útil se pudéssemos prevenir e evitar o desenlace fatal e assegurar a imortalidade. Obviamente, não podemos. Não, pelo menos, no plano físico, material. E no espiritual? Mistério! Não sei! Ninguém sabe! Essa crença está adstrita, só e rigorosamente, ao terreno da fé. Ou seja, na absoluta crença no objetivamente incrível


Essa valorização do futuro, fruto exclusivo da esperança, é a única forma que temos para fugir da realidade, caracterizada pelo imprevisto, por surpresas boas e ruins, algumas (poucas) resultantes dos nossos atos, mas a maioria aleatória e impossível de prever e, por conseqüência, de prevenir quando se tratar de algo ruim. Ou seja, a de fantasiar esse “porvir venturoso e bem-sucedido”. E nem tanto o futuro próximo (posto que igualmente incerto). Todavia o que está muito à frente, algumas décadas adiante da época atual. Teimamos, pois, em glamourizar o futuro. Afinal, como afirmou Eliot, “o homem não suporta a realidade”, posto que, por mais que tente, não consegue escapar de suas traiçoeiras armadilhas.


Por exemplo, seus negócios vão de vento em popa. As vendas crescem exponencialmente, o sucesso é nítido e parece interminável. Subitamente, porém, os “ventos mudam”. Às vezes, tais mudanças ocorrem por erros seus (de avaliação ou de conduta), mas nem sempre. Fatores alheios ao seu controle desestabilizam seus negócios. As vendas mínguam, as dívidas crescem e... quando menos você espera... vem a derrocada. É raro esse cenário? Você sabe que não. É a coisa mais comum que há. Ninguém, todavia, entra no mundo dos negócios prevendo fracassos, mesmo estes podendo acontecer sem que você tenha feito nada, rigorosamente nada de errado. Esta é outra forma de fuga da realidade. Se você pensasse nessa possibilidade de derrocada não faria nada. Viveria angustiado, temeroso, preocupado, sem ânimo e sem ação.


É verdade que uma das melhores formas de não se deixar abater pelas agruras da vida é vislumbrar, sempre, o lado positivo das coisas. Tudo tem, também, o seu avesso, tanto o bem quanto o mal. Nada é bom demais ou totalmente ruim. Temos, isto sim, é que desenvolver aguçado senso de proporção, o que, convenhamos, não é fácil. Não proponho, claro, que optemos por nos alienar e fugir da realidade, o que é inútil e, como destaquei, impossível.


Sugiro, isto sim, vislumbrá-la em sua inteireza e integralidade: no direito e no avesso. Temos que viver sempre embriagados, não há outro jeito, caso contrário não usufruiremos nada da vida que, queiram ou não, é curta e tem fim. E cuja extensão felizmente (reitero) não conhecemos. Quando digo que temos que viver embriagados, não estou recomendando que se embriague de álcool, óbvio. Essa embriaguez nos conduz apenas a paraísos artificiais, que na verdade são visões do inferno. A que proponho é a de beleza, de otimismo, de ideais e de luz. É uma forma de alienação? É! Mas pelo menos é a mais agradável que conheço e a menos prejudicial. Sugiro que possamos viver essa situação citada nos versos de “Plenilúnio” pelo poeta Raimundo Correia:


“Há pó de estrelas pelas estradas...
E por estradas enluaradas
eu sigo às tontas, cego de luz...”


E eu aduziria: “porém feliz!”. Que as mudanças são a principal característica da vida, todos sabem, ou deveriam saber, se não pela consciência, ou pela observação, ou pela experiência, ao menos pela intuição. Muda nossa aparência (porquanto envelhecemos), alteram-se nossos gostos, multiplicam-se nossos conhecimentos, mudam (para melhor ou para pior) nossas circunstâncias. Tudo, absolutamente tudo, passa por permanente e contínua alteração.


Os males que nos afligem e que parecem intermináveis, um dia, sem que às vezes sequer nos apercebamos, vão desaparecer. Da mesma forma, deixarão de existir muitos bens que nos são preciosos, quando não todos. Pessoas amadas vão morrer, ou nos decepcionar, ou nos trair, ou se mudar para outros lugares e nos causar dores e sofrimentos. Abriremos mão de atividades que nos dão orgulho e prazer, pois tudo e todos se acabam. E perderemos coisas que julgamos, hoje, preciosas e imprescindíveis. Tudo, absolutamente tudo, portanto, passa, se transforma ou muda.


Só as conseqüências dessas mudanças é que permanecem em nosso espírito enquanto vivermos. E um dia... também acabamos, mas, felizmente, sem saber “como” ou “quando”. Seria terrível se soubéssemos disso. Luiz Vaz de Camões escreveu os seguintes versos a propósito:


“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.


Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades”.


Embora não suportemos a realidade, saibamos ou não viver, tenhamos ou não fé numa vida espiritual além desta carnal; fantasiemos ou não um futuro vitorioso, feliz e promissor, de uma verdade irrestrita e absoluta não podemos jamais fugir: somos mortais e um dia deixaremos de existir. Conclusão mórbida? Pode ser! Pessimista? Em absoluto! Queiramos ou não, dessa realidade jamais conseguiremos escapar. Temos que suportá-la!


Boa leitura.

O Editor.




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Um comentário:

  1. Pensar na morte não tão pouco para deixarmos o tempo passar sem proveito, e nem tanto a ponto de nos tirar a alegria de viver. Qual é a quantidade certa?

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