Em defesa da mão esquerda
* Por
Mara Narciso
Faz todo o sentido
chamar o Demônio, o Maligno, o Satanás de Canhoto. É o ser contrário, é o
oposto, é a personificação no Mal e de todos os vícios. Na Bíblia, o lado do
Bem é à direita de Deus Pai. Pelo lado oposto, alguém que seja determinado
geneticamente para ter maior habilidade com a mão esquerda é sinistrômano, em
oposição a manidestro, que são os certos, os corretos, os direitos.
O mundo é dos destros,
onde os canhotos enfrentam a existência pelo avesso, recebendo a pecha de
inábeis, desajeitados, por fazerem tudo invertido, ou de forma canhestra. Caso
um destro acordasse num mundo canhoto entenderia as dificuldades e não criticaria
o esquerdo pela maneira de dobrar o punho para escrever. De que lado estão os
controles principais de qualquer máquina? A porta se abre para onde? A maçaneta
gira no sentido horário, enquanto o canhoto do cheque tortura o punho do
sinistro. E a espiral do caderno? Como se usa um abridor de latas? Como é um
gabinete dentário? De que lado está o mouse? Como estão as cordas do violão, e
como é uma guitarra? Para onde corre a escrita no ocidente? De que lado estão
as marchas dos carros? A carteira escolar tem a prancha em que braço? Tudo
existe para beneficiar 90% da população. Os restantes que se virem, afinal,
quase todos pensam que escrever com a mão esquerda é uma escolha, um hábito
sinistro, um vício a ser combatido.
Na Idade Média, usar a
mão esquerda significava ser bruxo ou mensageiro do Mal. No Brasil, muita gente
apanhou e teve a mão esquerda amarrada às costas para combater o defeito. Meu
avô Petronilho Narciso, nascido em 1908 passou por essa tortura, mas nunca nos
confessou seu sofrimento. Fazia tudo com a mão errada, exceto comer e escrever,
pois fora treinado para usar a certa. Uma vez, em seu alpendre, precisei anotar
algo, e ele gritou: “canhota!” Em tom de reprovação. Não sei de quem herdei
isso, Vovô!
Dez por cento dos
atuais 7,5 bilhões de humanos são canhotos, e apenas 2% são ambidestros, hábeis
com as duas mãos. O sinistro, palavra que significa pernicioso, mau agouro e
desastre, gasta mais energia para fazer o mesmo que os destros em seu mundo
direito, mas a culpa é do canhoto quando manifesta LER, Lesão de Esforço
Repetitivo para escrever (de todas as formas), como é o meu caso, que uso o
lápis desde os três anos. Nesta idade, Milena, a minha mãe, me comprou tesoura
e lápis de cor, e tentou me obrigar a trocar de mão. Eu chorava, porque não
conseguia. Daí ela deixou a natureza seguir. Meu filho, que tem bisavô materno,
avó paterna e mãe, todos canhotos, não escapou da sinistrose, mas foi
diferente. Quando ele chegou da escola dizendo, “eu sou canhoto?”, lhe
respondi: a sua mão forte é a esquerda.
Eu escrevi com o braço
no ar durante quase todos os 10 anos das duas faculdades. Os quilômetros
escritos em toda uma vida só não são em maior número do que aqueles que eu li.
Nos 27 anos de estudos formais, escrevi quase tudo o que os professores
mandavam e falavam. A dor no braço esquerdo surgiu há dez anos, no começo do
Jornalismo. Eram 8 horas de consultório (Endocrinologia) mais quatro de
faculdade no mesmo dia. Desde então tenho crises, com seus respectivos
tratamentos. Há um ano a dor não passa, havendo perda da função. Alguns já me
condenaram: mas você usa a mão esquerda! Ou então: passe a escrever com a mão
direita! Isso quando não dão risada ao saber do meu mal.
Ter altas habilidades
com a mão esquerda é uma característica genética (há discordância sobre a
existência ou não de genes canhotos), situação na qual o lado direito do
cérebro pode ser até 11% maior e conter o centro da fala. No destro o
hemisfério cerebral que predomina é o esquerdo. Ser canhoto não é uma
preferência invertida. Não é um costume adquirido. Comigo o esforço foi
extremo, e cá estou eu com perda funcional. Digito agora apenas com a mão
direita, que já me dói, pois há três meses faço tudo com ela, menos escrever
manualmente. Ser obrigado a trocar de mão é traumático, mas ser julgado
injustamente é ainda pior.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
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