Fantasmas
* Por Pablo Uchoa
O Medeiros
nunca me respondeu quando eu perguntei quem era ele.
Medeiros ou Astolfo, agora tanto faz,
mas em outras épocas o homem de paletó azul marinho e gravata marrom não saía
da minha cabeça, e eu tentava loucamente responder a essa pergunta.
Para mim era um burocrata, desses de
repartição mal-iluminada e cheirando a suor de ônibus lotado com cigarro, isso
ainda existe? Ninguém fuma mais...
Mas no fim engavetei o Astolfo ou
Medeiros antes mesmo da concepção, sem dedicar-lhe sequer a primeira linha. O
homem ficou apenas no rascunho, traços de lápis “crayon” no papel vegetal,
foi-se.
E no entanto a semana avançou,
impiedosa.
A folha em branco do computador às
vésperas do “deadline” me recorda que eu devia ter agarrado o Astolfo ou
Medeiros para tirar alguma história, umazinha sequer. E se eu contasse um caso
antigo e dissesse que é novo?
Nessas horas me vêm à cabeça os passos
curtos e compenetrados de um certo cronista que entra diariamente pela porta da
redação, e sai pouco depois tendo deitado na folha em branco dois ou três
galalaus de parágrafo que o editor espaça e titula.
Como diabos ele faz isto, é um enigma
para mim.
Nada mais libertador que deitar um
Astolfo ou Medeiros inteiros no branco de uma página, e beber uma cerveja
aliviada no happy hour.
Certa vez, consegui ressuscitar uma
personagem nascida há coisa de quinze anos, e isto me deixou feliz. Eu já não
agüentava mais aquelas mãos pequenas que na história se inclinavam a buscar o
maço de cigarros vermelhos, sonhava com aquilo, já.
Devo ter vivido uma milionésima parte
do que sentiu o matemático John Nash ao finalmente encontrar um meio de
conviver com os fantasmas de sua esquizofrenia.
A coisa parece ter piorado depois que
inventaram estes dispositivos ultrapráticos de armazenamento de informação –
“pendrives”, “minidiscs” e afins. Agora, multiplicam-se fantasmas arquivados em
parágrafos de arquivo Word que nunca formarão um conjunto, como um braço sem
cotovelos.
É a reedição de outra encrenca que
surgiu há mais tempo, com aqueles mini-gravadores de voz, e graças a Deus,
aparentemente, desapareceu.
Mas escritor que era escritor portava
um, para o caso de surgir uma idéia em hora inapropriada.
Hoje, revejo velhos “mapas mentais” e
me pergunto se eram arremedo de crônica, conto ou apenas efeito do álcool.
Tudo não passa de traço disforme e sem
graça, Astolfos e Medeiros incompletos e de gestos inconclusos, como a menina
que por quinze anos ficou parada entre o encosto da cadeira e o maço de cigarros
vermelho, ainda por cima em uma posição incômoda, doída.
Pensando bem, acho que o cronista que
vejo diariamente caminha compenetrado na redação para desviar do olhar dos
fantasmas que se lhe acercam cada vez que ele se senta ao monitor. Que pelo menos
os fantasmas dele sejam mais agradáveis que os meus.
Astolfo ou Medeiros, burocrata de
repartição pública mal-iluminada e cheirando a cigarro, veja lá se isso é gente
para se aturar por muitos anos.
(*) Cronista
e editor do site www.narizdecera.jor.br. Vive atualmente na Inglaterra,
dedicando-se a pesquisas no Institute for the Studies of the Americas, da
Universidade de Londres. Autor do livro-reportagem “Venezuela: A Encruzilhada
de Hugo Chávez” (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no prêmio Vladimir Herzog
2004.
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