Guiado por uma estrela
A casa era das mais pobres do bairro.
Seguramente, era, pelo menos, a mais judiada da rua. As paredes externas tinham
a pintura descascada em vários pontos, refletindo falta de manutenção. Parte do
muro lateral havia desabado, mostrando um quintal surpreendentemente
bem-cuidado e limpo, com um pequeno canteiro de flores num lado, uma horta de
proporções médias no outro e um mastro, com as figuras dos santos cultuados em
junho – Santo Antônio, São João e São Pedro – feitas de tecido, já desbotado em
conseqüência da chuva e do sol, ao centro. O portãozinho da frente, de madeira,
estava desconjuntado, apodrecido por falta de pintura e ameaçava se decompor
nas mãos de quem o tentasse abrir.
Fui recebido na entrada da tosca
residência por toda a família em comitiva, vestida de forma simples, porém
asseada, com trajes domingueiros, como se eu fosse a pessoa mais importante do
mundo. Fui recepcionado pelo chefe da casa, um senhor precocemente envelhecido
pelo trabalho e por privações de toda a sorte – era caminhoneiro e passava a
maior parte do ano nas estradas, por este imenso Brasil afora –; por sua
esposa, que aparentava uns 70 anos (depois soube que tinha apenas 55) e por
suas três filhas.
Os filhos, casados, igualmente
caminhoneiros, não puderam vir. Estavam trabalhando. Um, levava uma carga de
eletrodomésticos para Brasília. O outro, fora buscar uma partida de arroz no
Maranhão. As respectivas esposas foram para as casas dos seus pais.
As filhas formavam uma escadinha. A
mais velha, beirava os 25 anos. Tinha problemas mentais e pouco, ou nada,
ajudava na casa. A do meio, havia completado 18 anos recentemente, mas não
estava namorando. Trabalhava como diarista, mas o que ganhava mal dava para a
feira da semana. A caçula faria 13 anos em janeiro e havia arranjado colocação
de doméstica numa mansão do bairro, praticamente em troca, apenas, de casa e
comida.
Como se vê, era uma família pobre,
muito pobre, paupérrima. Seu único patrimônio era o caminhão, cuja manutenção
custava caro, os “olhos da cara”. Havia meses que o dono da casa mal conseguia
cobrir as despesas do veículo. Por isso, a renda familiar era escassa e nem
sempre dava, sequer, para as necessidades mínimas. Soube que estavam com três
meses de aluguel atrasados e que o proprietário já ameaçava entrar com ação de
despejo.
Apesar da pobreza, todavia, raramente
tive a oportunidade de conhecer uma pessoa tão alegre, tão comunicativa e,
sobretudo, tão otimista como aquele humilde caminhoneiro. Conhecemo-nos num bar
do bairro, cerca de seis meses antes desta minha visita à sua casa. Na ocasião,
ele fez questão de pagar-me uma bebida. Conversa vai, conversa vem, soube que
eu era gaúcho. Foi o que bastou.
O homem, embora mineiro de nascimento,
nutria fascinação, diria fanatismo, pelo meu Estado natal. Até seu sotaque era
do Sul. Juraria por todas as juras que era meu conterrâneo. Não era! Depois
disso, todas as vezes que viajava para o Rio Grande, ele me trazia um pacote de
chimarrão. Eu fazia questão de pagar pela encomenda, apesar dos seus enfáticos
protestos. Ocorre que o homem era um exagerado! Eu tinha, em casa, estoque da
erva suficiente para pelo menos dez anos! Afinal, no bairro, ninguém mais
tomava chimarrão. Os amigos que o experimentaram, detestaram. E para o meu
consumo pessoal, um único pacote dava para dois meses ou mais.
Fui surpreendido, na véspera deste
episódio, por um convite, feito com a maior cerimônia, pelo meu novo amigo. Ele
queria porque queria que eu passasse o Natal com sua família. “É uma casa de
pobre, não vai reparar, mas o convite é de coração!”, havia dito, todo cheio de
dedos, ansioso para que eu aceitasse. Aceitei, é claro.
Na época, eu morava sozinho. Tinha meus
verdes 22 anos, trabalhava numa multinacional francesa de Paulínia, ganhava
muito bem e estava me preparando para prestar, em janeiro, vestibular para
Medicina. Não podia, pois, me dar o luxo de passar as festas com meus pais, que
moravam em São Caetano
do Sul. Precisava ralar no estudo. Relutei, fiz-me de difícil, mas finalmente
aceitei seu convite. Afinal, nunca fui dado a luxos.
Entrei na modesta habitação, e os
sinais de pobreza estavam por toda a parte. O interior estava imaculadamente
limpo, é verdade, mas as paredes, com rachaduras em diversos pontos, há anos
não viam tinta. O forro, por sua vez, estava negro em alguns pontos,
notadamente nos cantos, em decorrência de vazamentos, provavelmente causados
por telhas quebradas e não-trocadas. Na sala, onde fui instalado com todo o
conforto, havia uma sólida mesa, cadeiras bastante velhas, mas em bom estado de
conservação, um aparelho de TV, muito antigo, e uma árvore de Natal, tosca, sem
pisca-pisca, que há muito já vira melhores dias.
A ceia foi tranqüila, alegre e
sem-cerimônias, de parte a parte. O cardápio era dos mais frugais. Consistia de
dois frangos assados, arroz branco, e maionese caseira. Mas nunca, ao que me
lembre, comi comida mais gostosa e rica do que essa. A ceia foi aberta com um
aperitivo, uma caninha especial, comprada diretamente num alambique caseiro do
interior de Minas, que desceu macia e quente. Um vinho de garrafão, adquirido
no Rio Grande do Sul, servia de acompanhamento.
Contamos casos e mais casos, histórias
sem fim, das nossas respectivas experiências pessoais. E rimos, rimos muito,
com espontaneidade e descontração, o tempo todo, mesmo quando não havia motivos
para o riso. À certa altura, a pretexto de que precisava estudar para o
vestibular (e precisava mesmo), pedi licença para me retirar. Despedi-me com
afabilidade e emoção dos donos da casa, agradecido por aqueles momentos ímpares
que passei em tão agradável companhia.
Num instante de distração dos
anfitriões, num impulso irresistível, puxei da carteira, tirei todo o dinheiro
que tinha (que era todo o meu décimo-terceiro, dos mais polpudos) e, sem
ninguém perceber, coloquei tudo debaixo de um vaso de vidro, com flores
artificiais, que estava sobre a televisão. A importância daria para cobrir o
aluguel atrasado e ainda sobrar alguma quirera.
Já fora da casa, olhei para o céu,
incrivelmente estrelado daquela noite inusitadamente quente de início de verão.
Sentia-me bem como nunca. Segui cantarolando o “White Christmas”, de Irving
Berlin, pela rua vazia, rumo à minha residência, tomado de uma gostosa, mas
indescritível, emoção, misto de alegria e de nostalgia.
A esta altura, o ar da madrugada estava
fresco. Uma suave brisa batia-me no rosto e assanhava meus cabelos. Ao longe,
ouvia o sino da Igreja de Santa Isabel, convocando os fiéis para a missa do
galo. Subitamente, uma estrela cadente riscou o céu noturno. Seria um
presságio? Não sei! Talvez! Só sei que, passados mais de cinquenta anos,
olhando retrospectivamente todo esse período, hoje tenho absoluta certeza de
que aquele foi o melhor dos Natais que já tive em toda a minha vida...
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Quem dá recebe em dobro. Essa foi a força do seu Natal.
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