Dom
Arns: entre o céu e o inferno
Por
José Ribamar Bessa Freire
Diz-que o cardeal dom
Arns, enterrado na sexta (16), subiu como um foguete direto para o céu. Bateu
na porta. São Pedro abriu, viu a sombra de uma batina vermelha, a casula roxa,
o solidéu, a mitra. Com a vista cansada, não conseguiu, porém, identificar seu
interlocutor:
Qui estis? - perguntou
em latim que, como todo mundo sabe, é a língua do céu. Por via das dúvidas,
repetiu na língua de Bob Dylan: Who are you?
Ouviu a resposta:
- Paulo Evaristo Arns,
cardeal de São Paulo.
- Quem? - insistiu
Pedro - agora em português.
- Xe marangatu,
ybaka-porã (*) - retrucou dom Paulo que começou a aprender a língua tupi com
Tibiriçá, seu colega na cripta da catedral da Sé morto em 1562.
- É isso que vamos
ver. De onde você vem?
- Je viens du Brésil -
disse dom Paulo, por via das dúvidas, na língua da Sorbonne onde obteve seu
diploma de letras.
São Pedro interfonou
para o chefe da hemeroteca do céu, São Jerônimo, padroeiro dos bibliotecários e
pediu que lhe enviasse jornais do Brasil daquele dia. Já com O Globo na mão, leu a manchete "DOM
PAULO EVARISTO ARNS (1921-2016): O 'ARCEBISPO DA ESPERANÇA' SE DESPEDE",
seguida do subtítulo: "Influente e ousado, líder católico escreveu sua história
de coragem na luta contra a ditadura militar". O porteiro do céu, então,
sentenciou, enigmático:
- Perdão, cardeal, mas
o senhor é suspeito. Aqui consta que seu salvo-conduto só lhe permite transitar
no inferno.
- Mas como? O inferno,
eu já conheço. Criei a Pastoral Carcerária em 1970. Percorri os porões da
ditadura, peregrinei por quartéis e delegacias, visitei presos políticos
torturados, ouvi o choro de Marias e Clarisses, presenciei exílios e muita
gente partindo num rabo de foguete, comprovei assassinatos nas prisões de quem
tinha fome e sede de justiça, testemunhei cadáveres jogados em valas na
periferia de São Paulo. Enfrentei generais. Sofri ameaças e calúnias e até um
atentado num acidente de automóvel no Rio, similar ao de Zuzu Angel. Está tudo
lá no livro "Brasil Nunca Mais".
São Pedro coçou a
cabeça, mas foi inflexível:
- Desculpa. As normas
são claras, aqui o senhor não pode entrar. Tem de ficar de quarentena, lá no
limbo.
- Por que, se vivi
franciscanamente, inspirado em Cristo? Vendi o palácio da Cúria Metropolitana,
com o dinheiro construí centros comunitários em bairros da periferia. Lutei
contra a injustiça. Dei abrigo aos aflitos, aos sem-teto, aos desempregados.
Criei a Pastoral da Moradia, fundei a Pastoral dos Moradores de Rua. Abri a
igreja aos movimentos populares, às oposições sindicais. Dialoguei com todas as
religiões. Incentivei participação de leigos nas comunidades eclesiais de base.
Batalhei em defesa dos direitos humanos. Exijo a presença de meu advogado Dalmo
Dallari, vou interpor recurso de apelação.
- Neste caso, o senhor
deve voltar ao Brasil, porque os trâmites aqui demoram mais do que processo
contra réus do PSDB no STF e nos tribunais de São Paulo, Minas e Curitiba -
disse Pedro.
- Não, pelo amor de
Deus, o Brasil não! Lá está pior do que o inferno. O país está em frangalhos.
Leia a delação premiada do Cláudio Filho, diretor de relações institucionais da
Odebrecht, cuja cópia me foi enviada por Clélia, uma paroquiana. Quadrilhas de
bandidos engravatados se apoderaram dos aparelhos de estado, usando
funcionários, recursos e espaços públicos para receber propinas. As cinco
etapas do processo estão descritas, com os nomes de cada um. Só o presidente
Temer aparece 43 vezes. O organograma da corrupção está todo documentado.
Pedro hesitou, mas
continuou ouvindo Paulo que engatilhou um data venia:
- Simão Pedro, filho
de Jonas, recebeu as chaves do céu. Diga-me, então, para que possa me defender:
por que as portas do paraíso estão fechadas para mim? O senhor não pode fazer
como o juiz Sérgio Moro, que em alguns casos não revela ao réu o crime do qual
está sendo acusado.
Pedro abriu o jogo:
- É que o fato de o
senhor ter sido elogiado pelo jornal O GLOBO, levanta sérias suspeitas. Depois
que esse jornal noticiou a morte do cardeal do Rio de Janeiro, em 2012,
descobrimos que o que sobre ele foi escrito era pura cascata, contrariava os
fatos. Por isso, precisamos agora checar o noticiário.
Foi aí que dom Paulo
Arns desfez o equívoco. Explicou que no Brasil era preciso ler os jornais nas
entrelinhas, com um pé atrás, para não se deixar enganar por artifícios
tipográficos, confundindo a verdade com o tamanho da letra. "É preciso
desconfiar de quem apoiou a ditadura quando elogia os que lutaram contra ela.
Com a edição do obituário, o jornal quer apagar sua cumplicidade com o
terrorismo de estado, limpar sua barra. A mensagem que eles querem passar com
essa cobertura não é sobre mim, é sobre eles. O tratamento que me deram sempre
foi outro - disse dom Paulo, ilustrando com um episódio.
Contou que durante
ditadura foi procurado por emissários de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho,
então Superintendente da Rede Globo, cujo filho fora expulso do colégio Santa
Cruz em São Paulo, por exibir filmes pornôs aos colegas. Eles iam interceder em
favor do Boninho, mas o cardeal, antes de ouvi-los, se adiantou ironizando:
– Já imagino porque
vocês estão aqui. Vieram anunciar que meu nome não continua mais vetado na TV
Globo, que censura até as missas da Semana Santa e a cerimônia de Lava-Pés, se
sou eu que celebro.
Pedro, que ouvira o
relato com atenção, pediu, dessa vez, o acesso à coleção completa do Globo.
Pesquisou todas as edições e comprovou que, além do silêncio, dom Paulo sofrera
campanha sistemática daquele jornal, que usou para isso seus articulistas,
entre eles o próprio cardeal Eugênio Salles. Tudo foi confirmado na hora pelo
jornalista Villas-Boas Correa, que acabara de chegar e pegou carona entrando
com o cardeal no paraíso.
Foi assim que as
portas do céu se abriram para dom Paulo, que lá está sentado à esquerda de Deus
Pai, ao lado de Zilda Arns e de dois bispos também interditados pelo jornal,
dom Helder e dom Valdir, que de Calheiros só tem o sobrenome. Na foto do céu
publicada nas redes sociais, não aparecem nem dom Agnelo Rossi, nem dom Eugênio
Salles.
*
Jornalista, professor e historiador.
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