A arte imita a história
* Por Marcos Alves
Um tanto
entediado pelo noticiário farto e cansativo, vasculho a internet – não em busca
de novidades, mas para bisbilhotar a vida de personagens históricos. Escolho
Tiradentes, talvez o nome mais facilmente lembrado entre as figuras
brasileiras, praticamente um herói nacional.
Joaquim José da
Silva Xavier, figura que qualquer pessoa no Brasil que possa ler este Literário
conhece, viveu em Vila Rica ,
hoje Ouro Preto, e inspira conversas que ficam ainda mais saborosas nas subidas
e descidas da bela cidade mineira.
Em Ouro Preto
conspira-se o tempo todo. É algo que está nas ladeiras, nos telhados, na
expressão de alguns anjos barrocos, nos malandros das esquinas, no olhar das
mulheres, nos agitos noturnos das repúblicas, nos bares, em todo canto.
Basta dar asas
à imaginação, puxar um pouco pela memória e começar a olhar em volta. O lugar onde a
cabeça de Tiradentes ficou exposta por mais de dois anos por conspirar contra o
império português está lá, agora, como monumento ao mártir. Em volta, tudo
permanece: o casario, as igrejas, as pedras das ruas.
E um mistério
ainda paira pelas ladeiras, por mais de dois séculos: onde foi parar a cabeça
de Tiradentes? Dizem alguns que está na
casa de Bernardo Guimarães, poeta e contista fascinado por Ouro Preto, onde
nasceu, viveu e morreu no século XIX. É dele o conto “A cabeça de Tiradentes”,
que como poucos escritos, descreve, esplendidamente o modo de vida na cidade
durante o período em que foi capital da província de Minas Gerais.
Tempos de
fartura, época em que o ouro era abundante e mexia com a vida de todos. Tanto
que era comum as negras se enfeitarem para os festejos dando brilho aos cabelos
com a poeira dourada que sobrava das lavras. “...e edificaram mais de um templo
magnífico com as migalhas de seus senhores.’ A leitura de Guimarães – o
Bernardo e não o João, é uma breve e divertida aula.
A abundância em Ouro Preto agora é
coisa do passado. O centro histórico está bem conservado, mas a cidade cresce
de forma desordenada na periferia – como quase todo município de porte médio do
interior do Brasil. Dos tempos de capital da província e berço da
Inconfidência, Ouro Preto ainda cultiva o gosto pela cultura e a pluralidade de
pensamento.
Museu e cenário
a céu aberto, Ouro Preto foi palco da encenação em praça pública do martírio de
Tiradentes, coisa de alguns anos atrás – a data não sei ao certo, mas o que
segue aconteceu de fato e quem quiser e puder que ajude nos comentários.
Bem, a tal peça
foi encenada em comemoração ao dia da Inconfidência, 21 de abril, e o roteiro foi fiel à história. Depois do
enforcamento no Rio de Janeiro as partes do corpo do alferes foram mandadas
para várias partes da colônia. A cabeça veio para Ouro Preto. A réplica usada
pelos atores também foi colocada no mesmo lugar onde, em 1792, estava a cabeça enfiada em uma estaca, método
usado para intimidar quem ousasse conspirar contra a coroa portuguesa.
Conta Bernardo
Guimarães que a cabeça ali ficou por 2 ou 3 anos. À medida que o tempo passava,
diminuía o interesse e a perplexidade por aquele símbolo da mão forte da coroa
sobre a colônia. Em uma noite em que só estava a caveira solitária a se
debater com o vento, enquanto o sentinela dormia, eis que um gaiato a rouba e o
guarda só tem tempo de ver o vulto sumir na esquina da rua das cabeças –
situada logo acima da praça.
Sim, rua das
cabeças, como mais uma vez ensina o conto: “...a origem desse nome sinistro vem
de que aí se fincavam na ponta de estacas as cabeças dos míseros enforcados
pelas esquinas dos becos”. No alto da
rua, diz-se que viveu um velho de vida reclusa e que, especula-se até hoje,
seria o ladrão da cabeça verdadeira. Ao contrário das vizinhas, a casa onde
viveu não ficou de pé para ajudar a contar a história.
Na peça, a
cabeça feita de gesso também foi erguida na praça e ficou dia e noite sob a
guarda de um sentinela. Não era ator, mas policial ou funcionário da prefeitura
– não me lembro bem, mas isso não tem importância.
Ocorre que em
um momento de descuido ou esquecimento mesmo, ninguém viu a cabeça sumir de
novo! O caso gerou mal-estar, foram feitas investigações e buscas até a polícia
encontrar um suspeito. No depoimento, o homem disse que não poderia mudar a
história.
Como o
personagem de Bernardo Guimarães, sabia onde estava a cabeça do mártir, mas não
poderia dizer. E o caso foi encerrado sem que a cabeça falsa aparecesse. Assim
como a verdadeira nunca apareceu.
* Jornalista e diretor de
vídeo.
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