Um homem imprescindível
Há uma declaração célebre do dramaturgo e poeta alemão
Bertholt Brecht que não me canso de citar, sempre que surge algum pretexto para
tal em que ela seja pertinente. Citei-a dezenas de vezes, e citarei quantas forem
oportunas e cabíveis, posto que com variações aqui e ali (dependendo da
tradução que me estiver à mão), embora todas as versões conservem, obviamente,
o conteúdo, que é o que importa. Brecht observou, com absoluta pertinência (não
me recordo se em alguma de suas tantas peças ou em outro contexto): “Há aqueles
que lutam um dia; e por isso são bons; há aqueles que lutam muitos dias; e por
isso são muito bons; há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; porém há
aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis”.
Essa citação cabe como uma luva a uma figura maiúscula da
minha cidade de adoção, a um campineiro ilustre que deveria ser citado sempre
como exemplo de solidariedade e de amor ao próximo, mas que pouca gente por
aqui (e fora daqui) conhece, por ser raríssimamente mencionado. Refiro-me ao
professor e jornalista Norberto de Souza Pinto, que deixou sua marca indelével
nas duas atividades principais a que se dedicou: o magistério e o jornalismo. Seu
nome veio à baila em uma crônica que meu confrade da Academia Campinense de
Letras, Rubem Costa, publicou, se não me engano em 2009, no Correio Popular de
Campinas, intitulada “Mestre Norberto”, que por feliz acaso me caiu nas mãos
nesta data.
Destaco que há um milhão de coisas positivas que eu poderia
citar do autor deste memorável texto, o que pretendo fazer oportunamente, com
mais vagar. Entre outras tantas coisas a dizer dele, enfatizo que esta exemplar
figura, que tenho a honra e o privilégio de poder chamar de “companheiro” (mas
ele é muito mais do que isso) de Academia Campinense de Letras, esbanja
talento, lucidez e entusiasmo aos (se não me engano) 98 anos de idade. Tanto
que, no final de 2013, lançou mais um de seus excelentes livros, “Bicentenário
de Campinas – A saga que a cidade amou”. Mas não é propriamente de Rubem Costa
que vou tratar hoje, nestas breves considerações. É de quem foi seu companheiro
de jornada e mentor, Norberto de Souza Pinto.
Esse mestre lendário, esse campineiro exemplar nascido em
junho de 1895 fundou, em 1917, quando a Europa vivia uma das mais sangrentas e
perversas guerras de todos os tempos, a primeira escola para crianças
portadoras de deficiência mental do Brasil. E, o que é mais notável, fê-lo por
iniciativa própria e com recursos exclusivamente pessoais, ele que lutava com
dificuldades financeiras até para se manter. Fez isso no mesmo ano em que se
formou professor normalista, aos 23 anos de idade, tendo seus estudos custeados
pelo bispo Dom Nery e pelo médico Thomaz Alves. Pouca gente, então, entendeu o
significado e o alcance da sua atitude. Afinal, eram todas crianças segregadas
e vistas como incapacitadas pela sociedade, pela escola e pelas famílias.
Norberto não somente lhes proporcionou ensino adequado, como dedicou toda sua
vida à recuperação delas. Só isso já lhe valeria um Prêmio Nobel da Paz, caso
houvesse justiça na atribuição dessa honraria.
Ao contrário de tantas e tantas instituições beneficentes,
que têm vida curta, dada a indiferença da sociedade, o Instituto de Pedagogia
Terapêutica Norberto de Souza Pinto sobreviveu ao tempo e ao pouco caso dos
vários governos, em suas diversas instâncias e também ao seu criador, que
morreu em 22 de dezembro de 1968. A escola está viva, vivíssima, prestando um
trabalho inestimável a gerações e gerações de crianças com deficiência
intelectual. Sou testemunha. Ela está perto de mim, no bairro em que resido, o
Jardim Chapadão. A instituição, que no ano que vem vai comemorar seu
centenário, é comandada, hoje, pela neta do educador, a socióloga Joselene de
Souza Pinto. Mas o Instituto não é o único legado (embora no meu entender seja
o maior) desse homem que, recorrendo á conceituação de Brecht, foi “imprescindível”.
Norberto foi o fundador, na década de 30 do século passado, da Associação
Campineira de Imprensa.
Ao longo de 40 anos, manteve sua coluna no Correio Popular,
além de colaborar com jornais de várias cidades do interior paulista, como
Ribeirão Preto, Araras, Jundiaí e vai por aí afora. Onde Norberto encontrava
tempo para tanta coisa? Sabe-se lá! O fato é que encontrava! E não só para
isso, mas para escrever e publicar diversos livros, tanto sobre ensino a crianças
com deficiência intelectual, quanto sobre jornalismo e literatura. Como não
admirar e não citar sempre e sempre e sempre como exemplo uma pessoa assim?! E
pensar que há tantos “ídolos com pés de barro” glorificados pela mídia, que não
se dá o trabalho de divulgar a obra e as idéias desse “gigante da espécie”.
Faço minhas as palavras de Rubem Costa que, no final de sua
crônica, exalta as realizações desse educador e jornalista. Sobretudo, quando
afirma que a criação do seu instituto é “uma obra feita de amor que traduz em
ação o mais desprendido dos anseios humanos — dar de si antes de pensar em si.
De Norberto de Souza Pinto, como marca de sua crença ao longo de uma grande
vida, só se pode falar com as palavras de Ruy definindo a fé: — um oceano que
continua a ser oceano enquanto as ondas perpetuamente correm sobre as ondas”. Ou
como Brecht certamente o caracterizaria: “um homem imprescindível”.
Boa leitura!
O Editor.
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Uma vida prática e emocionante. Quanta sorte você teve, Pedro, de encontrar essa fonte de amor para dela nos falar.
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