A véspera da traição
* Por
Cecília Prada
“Um
que come do meu prato, eis o que me entregará”. (Mateus VI,23)
– Vocês já provaram
testículos?
Disse de repente
Antonio Houaiss lá pelas onze.
Isso acontecia sempre.
Era a hora, naquelas reuniões do seu apartamento em Tudor Place, em que H. nos
brindava com seus surpreendentes pratos exquis, sua paixão – petiscos, coisas
de gastrônomo requintado, qualquer chicória preparada por ele era manjar dos
deuses, nunca provada antes nem depois. E era o todo do seu ambiente, o requinte
intelectual e material – os quadros, coleção, quadros brasileiros na maioria,
alguns com dedicatória do pintor. E os tapetes persas, e aquele sofá preto –
que era feito apenas de uma porta e algumas almofadas, dizia ele. E a ânfora
grega do século VI A.C. E todas aquelas
coisas, seu personalismo, seu bom gosto, inscritas na trajetória daquele homem
pequeno, muito feio, muito inteligente, o filho de um alfaiate árabe de
Copacabana, um pequenino homem, um gourmet com apenas um terço do estômago, um
diplomata que...
– Testículos?
Nos grandes momentos
históricos, há de repente um momento em que a gente sente que está vivendo um
momento histórico. Que algum dia, quando se quiser contar aqueles dias, uma
frase haverá, a expressão de um rosto, uma música, um cheiro, qualquer coisa –
da qual nos recordaremos, como se fosse um ponto atingido, o ponto da
estranheza, um ponto em que se diz aqui estou eu vivendo isto e esta é uma cena
de romance. Na concreção do detalhe, e às vezes do mais insignificante e até ridículo
detalhe, nos fixamos – é nele que conseguimos nos definir, muito mais tarde,
dizer, ah! assim éramos, assim éramos nós, naquele tempo...
Assim éramos nós,
atingidos, tensos, infelizes, naqueles primeiros dias de abril de 1964. Um
bando de diplomatas até a véspera engajados na política externa independente de
um Governo que em noite recente dissera resistirei até a morte, e que no dia seguinte aparecia sorridente e
acenando na porta do avião que o levara para o Uruguai.
Sim – vivíamos a História,
seus repentes, sua traição. Naquele momento nos sentíamos órfãos, desamparados.
Como cantores de ópera que, no meio de uma ária
importantíssima, sentissem que repentinamente a orquestra parara – o
gesto esboçado, o sopro na garganta, a palavra cortada... de repente alguma
coisa aconteceu – o tiro de pistola no meio do concerto, de que falava
Stendhal?
Surpreendidos em nossa
representação. Diplomata, o que representa, eis aí. Parados no meio do palco,
nosso recital que ia tão bem, tão brilhantemente orquestrado ( Congratulations,
Mrs. R., your husband is the most brilliant diplomat in the Second Commitee...)
tão fluente e com libreto tão interessante a ópera, nós, geração privilegiada,
geração juscelinista, geração desenvolvimentista, nós que acabáramos de ganhar
um mundo todinho nosso, onde ordenaríamos uma sociedade enfim justa, achávamos,
ancorados na nossa pretensão...
– O golpe militar no Brasil atingiu a
coluna cervical da América Latina – diziam-nos os colegas estrangeiros, dando-nos
os pêsames.
Era esse luto, então.
Essa apreensão. O que aconteceria, com o país, conosco? Estávamos ainda com os
trajes da cena anterior, a garganta seca esperando, no momento seguinte o que,
quê regente, quê orquestra, quê música?
E comíamos testículos
de boi, regados a Château-neuf-du Pape, congraçados, uns poucos de nós, naquela
noite de abril com saudações de primavera, no refinadíssimo apartamento do
nosso líder de pensamento esquerdista, em Tudor Place, entre ânforas gregas,
tapetes persas e livros raros. E todos nós sentíamos, aquele era um
pré-momento, a transição, como se configurariam para nós as coisas, no momento
seguinte? – nós, pela própria situação profissional colocados exatamente no
meio das históricas coisas, à mercê de telex governamentais ríspidos e
objetivos, cada momento, cada gesto, cada movida de telex uma ameaça possível e
definitiva, remoção, demissão, pescoço cortado, exílios?
A minha ansiedade de
mãe recém-parida verteu-se numa quilometral conta telefônica Nova York-Genebra
– justamente na véspera do golpe meu marido viajara, para participar da sessão
anual, na ONU européia. Localmente, tentava me valer da experiência dos
próprios H., em matéria de reviravoltas políticas – já eram vezeiros nessas
coisas. A. H. sofrera um primeiro expurgo, ainda no tempo de Getúlio –
presidente-eleito (normalidade democrática? é o que se diz, basta ver isso para
pensar que não...). Na mesma leva, nos anos 50, que também afastara da carreira
durante sete anos João Cabral de Mello Neto. Em 1956 ambos haviam ganho uma
batalha judicial contra o Itamaraty. Naqueles primeiros meses de 64, Antonio
Houaiss havia sido promovido a Ministro. Sua mulher, Ruth, dizia:
– Não pode ser. Se o
A. foi promovido, alguma coisa vai acontecer no Brasil...
Aconteceu.
O apelido de Ruth era
Cassandra.
Mas Ruth não era a
única a achar que alguma coisa devia acontecer no Brasil.
Havia, sim, aquele
feeling no ar, aquele desconforto. Desde o trágico 22 de novembro de 1963, o
assassinato de Kennedy. O fortalecimento dos regimes militares na América do
Sul. Da direita.
Então naquela véspera
da traição, naquela histórica última ceia, éramos poucos e avulsos, uns seis ou
sete, porque logo, atingida pelo raio golpista, a Delegação se cindira – os
deste lado e os do lado de lá, o desconforto, a asperidade do momento – as
máscaras que caíam. O bonde da História que descarrilava. Muitos tentavam se
equilibrar a todo custo, agarrando-se aos balaústres, jogando os colegas para
os trilhos. Alguns conseguiram: cresceram dedos em riste, cochichos, por trás
das portas. E foi na Delegação do Brasil junto à ONU, em Nova York – definida
como célula comunista – que se instalaria, logo mais, o primeiro Inquérito
Político-Militar (IPM) do Brasil.
A véspera da traição.
(E o que o atraiçoou
comia à mesa com ele, no banquete dos
testículos – de boi. Na ceia dos aflitos).
Entre os devotos
discípulos, comia à mesa um colega diplomata que chamarei de Gilberto Torres
Melo, naquele tempo chefe interino de nossa Delegação. Era um homem feio e
pesadão, e para rimar, garanhão. Cada ano aparecia com uma nova mulher, que
apresentava como “Senhora Torres Melo”, um dia acordava, olhava para a cara da
mulher ao seu lado e se perguntava o que esta Fulana está fazendo aqui? E
despedia-a. De casamento mesmo tivera um ou dois, e um filho que lhe sobrava do
outro lado do mundo. Houaiss e Ruth eram seus amicíssimos de longa data, os que
lhe davam estabilidade, os que lhe lembravam o aniversário do longínquo garoto,
de quem eram padrinhos. Os que lhe emprestavam dinheiro até, se dizia. Nas
curtidas noites de Tudor Place e papo socializante, Torres Melo era dos mais
assíduos, embasbacado de entusiasmo com os brilhantes intelectuais que lhe
ornamentavam a Delegação.
Partilhávamos naquela
noite um gosto de exílio antecipado – e era uma despedida. Um banquete ritual
de condenado. Porque Antonio Houaiss já
recebera ordem para deixar Nova York e assumir outro posto consular, no Canadá.
Era o dedo amigo do Embaixador Azeredo Silveira, naquela época chefe do
Departamento de Administração do Itamaraty, que o queria proteger, tentando
retirá-lo da cena. (Não houve na realidade tempo para essa tentativa de se
esconder o A. H. – um mês mais tarde, já em Montreal, acabou sendo chamado ao
Brasil, submetido a inquérito e novamente cassado).
Mas no dia seguinte
Carlos Lacerda – que passaria à História como “O Corvo” – ainda empolgado pelo
golpe que ajudara a tramar, ainda Governador do Rio, ainda “revolucionário”
(depois seria também robespierramente guilhotinado), chegava para uma visita
oficial a Nova York. Torres Melo revigorado, recuperado da depressão da véspera
– tal o poder dos testículos de boi –, desdobrou-se, recebeu-o regiamente, todo
sabujo e lambuzo. Num banquete teceu os maiores elogios ao Governador e à
gloriosa Revolução que eliminara a Hidra Vermelha.
E mandou a secretária
ligar para os H.: eles que desculpassem, contava com a sua compreensão, mas
daquele momento em diante deveriam considerar-se proibidos de comparecer ao
recinto da Delegação. E suspendia inclusive a festinha de despedida que estava
sendo preparada pelos funcionários – prevista no cerimonial da Casa. Porque
tudo, no estreito mundo do Diplomata, rege-se segundo um estrito protocolo –
até os assuntos sexuais e de família, como tive ampla oportunidade de verificar
na própria escorchada pele.
No caso de
transferência de posto, prescreve o protocolo algumas palavras, mesmo alguma
emoção permitida no lencinho bordado de alguma antiga funcionária – quando o
chefe em questão foi “tão bom”. E a solene entrega de uma bandeja de prata, que
varia em peso e tamanho, rigorosamente, com o cargo ocupado pelo diplomata.
Naquele caso, sendo H. Ministro, o peso seria razoável.
Não houve bandeja.
Desfalcada ficou a coleção dos H.: Torres Melo, aquele amigo da véspera, aquele
que comera do mesmo prato dele, renegava-o – proibia a entrega do troféu.
Nem conhecia mesmo, o
A. H.
E se segurava, com
todas as mãos, à Carreira, ao cargo. Morreu Embaixador, aposentado, pensão
assegurada.
Como se vê:
testículos, são coisa importante.
_______
(Do romance autobiográfico inédito MEMÓRIAS
IMPERFEITAMENTE DIPLOMÁTICAS).
*
Escritora e jornalista, estreou na década de 50 no jornal A Gazeta de São
Paulo. Como jornalista trabalhou em vários jornais e revistas de São Paulo e
Rio de Janeiro, e em 1980 ganhou o Prêmio Esso de Reportagem pela Folha de São
Paulo. É detentora de quatro prêmios literários e tem cinco livros de contos
publicados, dentre os quais: O caos na sala de jantar, Estudos de interiores
para uma arquitetura da solidão e Faróis estrábicos na noite, além de vários
livros sobre jornalismo. Seus contos e artigos figuram em revistas estrangeiras
e em antologias brasileiras e do exterior. Foi diplomata de carreira (turma de
1957) do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores.
Atualmente reside em Campinas (SP), onde termina um romance autobiográfico.
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