Ignorância como aliada das epidemias
A “ignorância”, em seu sentido lato, ou seja, no de
desconhecimento, foi, ao longo de milênios, entre tantas outras causas, a maior
aliada das várias epidemias que afetaram a humanidade, levando-a, em muitas
ocasiões, até à beira da extinção. Ainda hoje, mesmo com os avanços
tecnológicos em todos os campos de atividade, sobretudo no do conhecimento e da
informação, e mesmo com a propalada globalização, há milhões de pessoas vivendo
praticamente na Era da Pedra Lascada. E elas pagam duríssimo tributo por isso.
Imaginem há mil, dois mil e, claro, muito mais anos!
A quase totalidade das pessoas (havia raras exceções) não tinha
a mais elementar noção de práticas de higiene. Coisas como água tratada, coleta
de lixo, tratamento de esgoto e comportamento até muito mais elementar e hoje
corriqueiro, como o simples ato de lavar as mãos antes das refeições, não
passavam, nem remotamente, pela cabeça de ninguém. Desconhecia-se, claro, a
existência de vírus e bactérias. E as doenças, todas elas, eram atribuídas
exclusivamente a “castigos divinos”. Nessas circunstâncias, não há nenhum
exagero em afirmar que a espécie humana escapou por puro acaso da extinção.
Os sintomas das principais doenças epidêmicas, das que eram
mais mortais, como a peste bubônica, a varíola, o cólera, a febre amarela
etc.etc.etc. eram do conhecimento geral e foram descritos até em detalhes por
diversos escritores, como atestam seus textos que sobreviveram ao tempo e ao
esquecimento e chegaram até nós. Muitos, os mais esclarecidos, tinham pelo
menos noção intuitiva de como se dava a contaminação, embora raros adotassem
providências até primárias para evitá-la. Outros, mais raros ainda, chegaram a “intuir”
algumas práticas de esterilização, embora sob ceticismo generalizado. Mas
ninguém, rigorosamente ninguém – e isso até a segunda metade do século XIX –
sequer desconfiava da existência de seres tão pequenos, microscópicos,
invisíveis a olho nu e tão mortíferos. Por isso, ninguém adotava nenhuma
espécie de providência para eliminá-los. Por que? Por pura ignorância.
Para complicar ainda mais as coisas, as autoridades que
comandavam as cidades não sabiam, ou não podiam adotar medidas de emergência,
nem mesmo as mais elementares, como, por exemplo, o isolamento das pessoas
doentes. Muitas por serem atingidas pelas doenças e morrerem em conseqüência delas.
Outras, por terem entes queridos afetados e mortos. E outras tantas, por deixarem-se
levar pelo puro instinto e simplesmente abandonarem as cidades, fugindo,
espavoridas, em pânico. Pudera! Tinham convicção de que qualquer providência
que viessem a adotar seria inútil para livrar seus liderados desses “castigos
divinos”. Deixavam as coisas por conta do clero que, igualmente, só determinava
às pessoas o que seus membros entendiam ser a única solução eficaz para um mal
que achavam ser espiritual: rezas, procissões, promessas, jejuns,
autoflagelações e todo o arsenal místico que conheciam. Enquanto isso, vírus e
bactérias seguiam agindo, em sua marcha sinistra, matando mais e mais pessoas.
Cito três exemplos, de três personalidades diferentes, que
ilustram como as epidemias eram encaradas, por exemplo, no século XIV. O trio,
cada qual de atividade diferente e com sua visão pessoal, comenta a pandemia de
peste bubônica que dizimou a população da Europa a partir de 1347. O monge
franciscano, Michele Piazza, registrou, com rara precisão, como se dava a
contaminação das pessoas. Escreveu: "Devido a uma infecção do hálito, que
se espalhou em torno deles enquanto falavam, um infectava o outro (...) e não
só faziam morrer quem quer que falasse com eles, como, também, quem quer que
comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse (...)".
Fosse um pouquinho mais atento à realidade e menos apegado a dogmas,
concluiria, facilmente, que essa forma de contágio não tinha nada a ver com “castigo
divino” como convictamente acreditava. Mas...
Já o médico e cirurgião francês, Guy de Chauliac,
recomendava medidas preventivas, algumas que poderiam funcionar como forma de
esterilização, outras tantas absolutamente inócuas. Recomendou: "(...) Como
autodefesa, não havia nada melhor que fugir da região antes que ficasse
infectada e tomar purgativos de pílulas de aloés, diminuir o sangue pela
flebotomia e purificar o ar pelo fogo, reconfortar o coração com o sene e
coisas perfumadas e abrandar os humores com terra da Armênia, além de resistir
à putrefação por meio de coisas ácidas (...)". É impossível de se saber
se, ou quantas pessoas conseguiram escapar incólumes da peste adotando essas
recomendações. A fuga dos locais em que
a doença estivesse instalada era a forma mais corriqueira de espalhar a epidemia,
porquanto muitos que fugiam, mesmo que num primeiro momento não tivessem nenhum
sintoma, já estavam irremediavelmente contaminados e, certamente, contaminariam
muitos outros.
Quanto à desorganização social e política das cidades
afetadas, quem descreve, com a precisão de um repórter, é o notável escritor
Giovanni Boccaccio em seu “Decamerão”. Ele escreve a propósito: "Em meio a
tanta aflição e a tanta miséria da nossa cidade (Florença) a reverenda
autoridade das leis, tanto divinas como humanas, caía e dissolvia-se. Os
ministros e executores das leis, assim como os outros homens, estavam todos
mortos, ou enfermos ou tinham perdido os seus familiares, de modo que não
podiam desempenhar função alguma. Por decorrência deste estado, era lícito a
todos fazer o que bem lhes agradasse (...)" Ou seja, era o tal do “salve-se
quem puder”. E, convenhamos, pouquíssimos podiam naquelas circunstâncias.
Boa leitura.
O Editor.
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Definições tão perfeitas que chega-se a ver os doentes.
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