Há um punhal sangrando amores
* Por
Eduardo Murta
Os filetes leves,
em vermelho, se desenham no punhal sobre a mesa. Mornos ainda. O tremor
dominando-lhe as mãos, sustentava que fizera por amor. E, pela honra do
coração, mereceria perdão de que ordem fosse. As minúcias não lhe saíam da
cabeça. Percebam, o ar saltando ofegante, como confissão de culpa. Ela mira em
dilema intermitente o telefone. Desvia o foco. Não quer se trair. Ligaria ou
não ligaria?
Essencial, agora, era juntar os cacos dos acontecimentos. E tudo se movia em
flashes tão miseravelmente incriminadores que, pudesse, subtrairia aqueles
fragmentos e que se incinerassem no fogo das injustiças. Afinal, não haveria de
se condenar. Buscou cumplicidade naquele instante, um desespero bêbado, e a cristaleira
lhe salvou. Escolheu uma bebida a esmo. Whisky. Tomaria sem gelo, a que
purgasse qualquer centelha de incerteza.
Logo ela, que faria mal sequer a desafetos. O desfecho daquela quarta-feira, julgava, é que se pusera incontornável. Começara a se desenhar num maio que lhe chegava fresco, cujas memórias poderia tocar, tão perenes se apresentavam. Se recorda de tê-lo visto por entre os vidros desdobrados na loja do Mercado Central. E lhe chamou a atenção não exatamente a beleza – que era a conta do chá – mas o jeito terno de conversar com os peixes. Sim, conversar.
Ela seguira para lá em busca de ameixas, damasco seco e verduras orgânicas, e cairia por inocente encanto naquela rede. Fora involuntário, sublinha, mas fatal. Deixou os movimentos se congelarem na contemplação platônica. E desabou em desconcerto quando olhos dele e dela se encontraram. Foi lance de gol. Ambos ensaiaram súbita tentativa de desarmar as confluências. Vã. Porque tornaram a se fitar, jeito longo.
Foi dele o gesto inaugural. Acenou com as mãos, num oi hesitante. Notou que
sorria, e caminhou em direção a ela. Falaria de quê, afinal? Do clima, das
pernas que lhe faltavam, bambas, de como se encantara com a cena? Resolveu
arriscar no jogo da sedução. Soletrou: Sonhava que um dia você viria. Viu a
face da menina se corar por inteiro. Sentiu o desalinho da respiração. No que
era desconjunto, enxergou reciprocidade.
Dois minutos, espíritos se desnudando, já falavam de preferências. Mais: de convergências. De autores que passavam por seus criados-mudos. Das canções que tinham lugar cativo no baú de sentimentos de cada um. E, creiam, até da bandeira do mesmo time que os unia. Vieram as noites memoráveis. Festas pagãs. Presentes de puro carinho. Peixes com nome e sobrenome. Viagens e, nelas, fotos que eram tradução-mor de um querer em dízimas periódicas.
Planejavam filhos para o ano seguinte. E, a sorte premiando, casa com vista para a montanha. Faltou combinar com o destino. E a ela as palavras varreram feito fossem barras de ferro partindo-lhe os joelhos. Pôs-se abaixo, aos pés dele, num choro de desidratar esqueletos. Implorou que não, que se amavam ainda, que razões assim tão frias eram indefensáveis. Suplicou. Ouviu o toque leve da porta se fechando, definitivo.
E não fez coisa outra, dias à frente, que não fosse arquitetar um plano de reencontro. Marcou, enfim, para a noitinha daquela quarta-feira. Perfumou-se. Deu cheiros à casa.
Elegeu esmalte provocante. Decote
generoso. Vinho. Velas. Eram 23h47, quando tomou o punhal às mãos. Alcançou
Pepo pelas costas. E fez varar-lhe a ponta, de uma extremidade à outra.
Sustentou, até que parasse de se debater. Se não podia estancar a sangria do
amor – ele sequer telefonara para dizer que não viria – sangraria ao menos seus
símbolos. E animaizinhos de estimação, peixes de Dia dos Namorados, como Pepo,
eram começo perturbador, difuso, e talvez inútil, para romper com tudo aquilo.
Mas já eram ao menos um começo.
* Jornalista,
autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de
2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas
condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos.
Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve
passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de
Folha de S.Paulo e revista Veja. Foi um dos colunistas pioneiros, e mais
aplaudidos do Literário.
E não fez coisa outra, dias à frente, que não fosse arquitetar um plano de reencontro. Marcou, enfim, para a noitinha daquela quarta-feira. Perfumou-se.
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