Peste descrita por um gênio da ficção
O livro “Diário do ano da praga”, de Daniel Defoe, é um
primor, se considerarmos, apenas, seu aspecto literário. É um romance desses
que a gente lê de um único sopro e fica querendo ler mais, na seqüencia,
relendo-o ou lendo outro livro do mesmo autor. Os três principais que escreveu,
e que tenho em minha biblioteca, são desse jeito: primorosos. Não é, portanto,
sua qualidade ficcional que eu e muitas outras pessoas contestamos. Para mim,
Defoe foi um gênio da ficção. O que se reprova nele é o fato dele não ter
alertado, especificamente nesse caso, o leitor que “Diário do ano da praga” se
tratava de uma obra de ficção. Pelo contrário, ele escreveu o livro como se
fosse sua autobiografia, o que nem poderia ser. E não é. A praga a que Defoe se
refere é a epidemia de peste bubônica e o ano é 1665. Contudo, nessa ocasião, o
escritor tinha, somente, cinco anos de idade. Não testemunhou (e nem poderia
testemunhar) portanto os fatos que relata e que dá a entender que presenciou
pessoalmente.
Não custava nada o escritor ter informado, no prefácio do
livro, que a obra tinha caráter ficcional, posto que baseada em fatos reais.
Valorizaria muito mais seu talento, sua criatividade, sua capacidade de
imaginação. Não agiu assim. É, deixo claro, a única restrição que faço ao
“Diário do ano da praga”. Dizem que até Gabriel Garcia Marquez, em princípio,
chegou a achar que o livro era, mesmo, uma reportagem. Não era! Esse fato,
todavia, não anula e nem diminui a importância da obra como documento histórico.
Até porque, as informações que prestou são, todas, rigorosamente exatas, como
pode se depreender comparando o que escreveu com textos de quem realmente testemunhou a
epidemia e registrou cada detalhe dela em seu diário. Refiro-me,
especificamente, a Samuel Pepys, sobre o qual já comentei.
Defoe descreve a peste como se fosse um repórter que vivia,
de rua em rua, à cata de histórias reais, retratando o drama das famílias, às
quais deu voz, como faria um bom jornalista (que ele era), mesmo encarando o
medo de vir a ser contaminado pela mortal doença. Seu relato reveste-se de
absoluta verossimilhança. Dizem que ele baseou boa parte do seu livro nos
diários de seu tio Henry, este sim testemunha ocular da epidemia e da
devastação de vidas que ela causou. Que magnífico ficcionista que ele se
mostrou!! Mas deveria, insisto, ter alertado o leitor que se tratava de uma
peça de ficção, o que valorizaria ainda mais seu magnífico romance, um dos
melhores que já tive a oportunidade de ler.Ninguém no seu tempo escrevia de
forma sequer remotamente parecida com a que escreveu.
Defoe recorre a engenhosos estratagemas para dissimular a
falta de informações exatas sobre os casos (verdadeiros) que relata. Utiliza-se
de rodeios realistas sobre como reagiria, por exemplo, uma pessoa normal que houvesse
perdido um ente querido, vítima da peste, sem poder fazer coisa alguma para
evitar. Reproduzirei, abaixo, um trecho do seu livro, em que ele trata do caso
de uma jovem moribunda e, principalmente da reação desesperada, insana mesmo,
da mãe da moça. É um relato típico de quem testemunhou pessoalmente a
ocorrência, que na verdade não testemunhou. Apenas imaginou como teria sido. Defoe
escreve: “(...) Enquanto aqueciam a cama, a mãe despia a jovem que estava
recostada. Examinando o corpo da enferma à luz de vela, descobriu, de imediato,
os sinais fatais no interior dos músculos da filha. Incapaz de conter-se,
retirou a vela e se pôs a gritar de maneira tão tremenda que poderia encher de
terror o coração mais firme. Não foi um grito ou um uivo único: sua mente,
havendo se enchido de medo, apagou primeiro: desmaiou (...)”. Essa seria a
reação de qualquer pessoa normal.
E Defoe continua seu relato: “(...) Quando acordou do
desmaio, a mulher correu por toda a casa, subindo e descendo as escadas como
uma louca, e o era de fato naquele momento. Continuou gritando e uivando
durante horas, perdendo, por completo, a razão ou, pelo menos, o domínio de
todos os sentidos. Nunca recuperou-os por completo, como me disseram. Quanto à
jovem, tratava-se, já, de uma pessoa morta, porque a gangrena que produz as
manchas havia se espalhado por todo o corpo e o falecimento se consumou duas
horas depois. E a mãe continuou gritando, sem saber nada sobre sua filha,
durante várias horas após a sua morte. Isso aconteceu há tanto tempo, que não
estou seguro de tudo, mas creio que a mãe nunca se recuperou e que morreu duas
ou três semanas depois (...)”.
Que realismo, que poder narrativo, que capacidade de impressionar
e comover o leitor! Essa, e outras tantas narrativas, resultam num magnífico
documento, com mais detalhes, inclusive, que os relatos de Samuel Pepys, que
testemunhou episódios como este, mas que não teve tanto talento para
descrevê-lo como o ficcionista Daniel Defoe. Que diferença com os romancistas
seus contemporâneos, que achavam que fazer literatura, que escrever romances,
era só contar histórias melosas, piegas, água com açúcar, com narrativas
completamente fora da realidade!!!
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
A genialidade comove tanto quanto a morte de uma jovem com peste bubônica.
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