Paradigma da luta das mulheres por igualdade
O acesso à educação formal foi a grande, possivelmente a
maior, conquista feminina em todos os tempos. Possibilitou às mulheres adquirir
conhecimentos que, por milênios eram, estranhamente, restritos somente aos
homens. Por conseqüência, a partir de então – coisa relativamente recente de
algumas poucas décadas – surgiram milhares, milhões, quiçá bilhões de médicas,
jornalistas, engenheiras, advogadas, juízas e vai por aí afora, abrangendo,
praticamente, todas as profissões, em várias partes do mundo.
Todavia, neste século XXI, em que já caíram tantos e tão
renitentes tabus e paradigmas sem sentido, frutos da ignorância e do
preconceito, nem todas as mulheres já podem exercer este direito, que deveria
ser inalienável. E os motivos são vários. Vão desde a ausência de escolas nas
regiões mais pobres do mundo, notadamente da África, da Ásia, da América Latina
e da Oceania, à absurda discriminação, às arcaicas e ultrapassadas tradições
machistas, à absurda idéia de inferioridade feminina etc.etc.etc. Há,
infelizmente, imensa quantidade de etceteras a considerar nessa questão.
De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura (Unesco), havia, em 2010, por volta de 800 milhões
de analfabetos no mundo (e estima-se que essas cifras praticamente não mudaram).
Dois terços desse número (qualquer coisa em torno de 540 milhões), são
constituídos por mulheres!!! Esse imenso contingente, portanto, é formado por
pessoas que, por uma série de razões, não puderam e ainda não podem participar da
principal conquista feminina em sua luta pela igualdade de direitos e deveres.
Boa parte dessas meninas impedidas de acesso ao que jamais lhes poderia ser
negado, ou cerca de 65 milhões, são de uma região específica do Planeta, ou
para ser mais exato, da Ásia: de partes do Paquistão e do Afeganistão. E a
causa disso não é a falta de escolas por ali, e nem sequer é a oposição de pais
retrógrados, nem outro motivo qualquer relacionado com política, ou economia,
ou mesmo cultura. É o fanatismo religioso, notadamente de um dos grupos mais
radicais que existem na atualidade: o talibã.
Foi a essa retrógrada organização, temida até por governos
das potências ocidentais e que não reluta em recorrer à violência quando
contrariada em seus interesses, que uma garotinha paquistanesa, na ocasião com
apenas doze anos de idade, ousou desafiar. Refiro-me a Malala Youzafsai, de
etnia pachto. Essa menina lúcida e determinada por muito pouco não pagou com a
vida por sua ousadia. Primeiro, foi ameaçada em inúmeras ocasiões para que
silenciasse e parasse de defender o que o talibã considerava heresia. Não
silenciou. Por isso, em 9 de outubro de 2012, foi vítima de covarde atentado à
bala, dentro de um ônibus, quando retornava para casa, de volta da escola. Foi
atingida por um tiro à queima-roupa na cabeça, disparado por um pistoleiro do
grupo radical.
Socorrida, ninguém acreditava que viesse a sobreviver. Numa
desesperada tentativa de salvá-la, a adolescente foi encaminhada a um hospital
de Birmingham, na Inglaterra. E o “milagre” aconteceu. Malala não apenas
sobreviveu, como, milagrosamente, recuperou todas suas funções, sem que
restassem seqüelas. Mas a garotinha (que completará dezenove anos de idade em
julho deste 2016), teimosa como que (ou melhor, determinada) não só não
silenciou, após quase perder a vida, como redobrou seu empenho e mantém, até
hoje, sua ousada cruzada, estando mais ativa do que nunca. Conquistou, por
isso, o coração e as mentes de milhões de pessoas ao redor do mundo. E também
dezenas dos mais importantes prêmios internacionais, além de inúmeras honrarias.
Reverteu tudo isso em benefício da sua causa. Por conseqüência, tornou-se a personalidade
mais jovem da história a conquistar um Nobel (o da Paz), em 2014, quando estava
com 17 anos de idade. Malala ainda vive em uma região tão perigosa e explosiva –
o Vale de Swat controlado pelo talibã – que chegou a ser proibida de deixar o
Paquistão para receber a premiação a que fez jus.
As autoridades paquistanesas alegaram, para justificar esse
impedimento, “questões de segurança”. Seu Prêmio Nobel da Paz apenas chegou às
suas mãos por ter sido levado, às escondidas, para sua cidade natal pelo
cineasta anglo-paquistanês Ali Sevy. Para quem quiser saber mais sobre essa
garotinha determinada e exemplar, recomendo a leitura de sua biografia “Eu sou
Malala” (Editora Companhia das Letras), que ela escreveu em parceria com a
jornalista britânica Christina Lamb. O livro já é best-seller mundial e no
Brasil está há várias semanas entre os dez mais vendidos.
Para o leitor ter uma idéia sobre o ambiente em que essa
jovem guerreira nasceu, viveu, quase morreu e ainda vive, transcrevo os dois
parágrafos iniciais da citada biografia. No primeiro, ela escreve: “No dia em
que nasci, as pessoas da nossa aldeia tiveram pena de minha mãe, e ninguém deu
os parabéns a meu pai. Vim ao mundo durante a madrugada, quando a última
estrela se apaga. Nós, pachtuns, consideramos esse um sinal auspicioso. Meu pai
não tinha dinheiro para o hospital ou para uma parteira; então uma vizinha
ajudou minha mãe. O primeiro bebê de meus pais foi natimorto, mas eu vim ao
mundo chorando e dando pontapés (...)”.
Na sequência, Malala revela: “(...)Nasci menina num lugar
onde rifles são disparados em comemoração a um filho, ao passo que as filhas
são escondidas atrás de cortinas, sendo seu papel na vida apenas fazer comida e
procriar. Para a maioria dos pachtuns, o dia em que nasce uma menina é
considerado sombrio. O primo de meu pai, Jehan Sher Khan Yousafzai, foi um dos
poucos a nos visitar para celebrar meu nascimento e até mesmo nos deu uma boa
soma em dinheiro. Levou uma grande árvore genealógica que remontava até meu
trisavô, e que mostrava apenas as linhas de descendência masculina. Meu pai,
Ziauddin, é diferente da maior parte dos homens pachtuns”.
Por tudo isso, considero Malala lídimo paradigma da milenar
luta feminina pela igualdade de direitos e deveres, simbolizada por este Dia
Internacional da Mulher. Sua batalha sempre foi, desde quando menininha de 12
anos – ocasião em que redigiu um blog, sob pseudônimo, na BBC de Londres e “apareceu”
para o mundo – pelo acesso das cerca de 65 milhões de meninas paquistanesas e
afegãs e das dez vezes isso em tantas outras partes do mundo, ao que nunca, por
motivo algum, lhes poderia ser negado, atrapalhado ou impedido: à educação
formal, como tantas e tantas e tantas garotas, da maioria dos países da
comunidade internacional, já podem fazer.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Um milagre em meio ao perigoso obscurantismo que a religião proporciona.
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