“Ainda estou aqui” (Marcelo Rubens Paiva)
* Por
Mara Narciso
Uns afirmam que nunca
houve uma Ditadura Militar, enquanto Marcelo Rubens Paiva conta em “Ainda estou
aqui”, de agosto de 2015, a história da família, tendo como ponto de partida o
dia 20 de janeiro de 1971, quando seu pai Rubens Beyrodt Paiva, de 41 anos, foi
arrancado de casa, na frente dos cinco filhos por meia dúzia de agentes da repressão,
e nunca mais voltou.
Para narrar o drama do
engenheiro e ex-deputado do PTB, o autor utiliza-se de depoimentos, cartas,
documentos, e ações na justiça, trazendo à luz fatos, muitos deles resultado da
busca da sua mãe Eunice Paiva. Ela, na época com 41 anos, foi arrastada ao
DOI-Codi – Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de
Defesa Interna -, com a filha de 15 anos. Ambas foram interrogadas e Eunice
esteve detida por 12 dias.
Marcelo Rubens Paiva
publicou “Feliz Ano Velho”, seu primeiro livro, em 1982, no qual narra um
acidente do qual foi vítima. O sucesso explodiu em reconhecimento, traduções
pelo mundo todo, filmes e prêmios. O drama de um jovem que fratura a quinta
vértebra cervical consterna, porém quem lê seus livros não se prende a essa
tragédia, um detalhe menor diante da sua capacidade de envolver, seduzir e
emocionar. Tem por estilo a sinceridade e a alta exposição. Sua linguagem
coloquial constrange, por, deliberadamente, conter erros, como por exemplo, iniciar
um parágrafo com “Me lembro”. Fala da sua decisão em prol da coloquialidade, o
que, no começo, incomodava a sua mãe, formada em Letras.
Paralelamente, Marcelo
descreve a situação de Eunice Paiva, que foi uma advogada brilhante. Formou-se
após a viuvez, defendia ex-presos políticos e indígenas, chegando a ser
especialista em nível internacional. Como portadora do Mal de Alzheimer,
iniciado em 2008, vai perdendo a memória e as características psicológicas,
sendo uma pessoa diferente a cada dia. Ao despertar, encontra-se uma nova mãe,
e os filhos vão se adaptando. Algumas explicações sobre a doença, descrita em
1905, são necessárias e úteis. A mãe que se vai, despede-se sofrida e
lentamente. O título se refere a ela, que está lá, ainda que não mais esteja.
O pai era um homem
alto, pesado, loiro, de olhos azuis, de classe abastada, que não tinha casa
própria, mas tinha viajado pelo mundo. Quando desapareceu, Marcelo tinha 11
anos. O pai explicava aos pequenos que a repressão política era motivada por
homens maus que não queriam dividir a riqueza de poucos entre os demais.
O Golpe que derrubou
João Goulart, chamado pelos executores de “Revolução de 1964” conquistou a
opinião pública, porque se dizia anticomunista. Rubens Paiva, numa estação de
rádio, lutou pela legalidade. Tropas de Minas e São Paulo marcharam até
Brasília em 31 de março de 1964 e o garantiram. Os Atos Institucionais tiveram
vez, um após o outro até o quinto. E a cada um deles excluía direitos, voz e
descontentes.
Rubens Paiva ajudava perseguidos
políticos. Um grupo de 70 presos foi trocado pelo embaixador suíço Giovanni
Bucher em janeiro de 1970, e se exilaram no Chile. A mãe de um deles trouxe
correspondências clandestinas, sendo descoberta, presa e torturada. Uma das
cartas estava endereçada a Rubens Paiva, e havia um telefone. A mulher fez a
ligação e confirmados nome e endereço, o ex-deputado foi sequestrado,
torturado, morto dois dias depois e nunca foi encontrado.
Em 1979 a Lei da
Anistia perdoou militantes de esquerda e militares torturadores. Em 2012
criou-se a Comissão Nacional da Verdade, que, baseando-se em leis
internacionais da época de Segunda Guerra e da ONU, definiu que crimes contra a
humanidade são imprescritíveis.
Eunice Paiva, a viúva
sem atestado de óbito nem seguro de vida e nem pensão, aguardou por 25 anos até
o Governo admitir que o marido morrera. A versão oficial afirmava que a viatura
que transferia o preso fora interceptada por dois carros com terroristas, e que
estes o teriam levado. Os filhos carregaram sua dor, e, cada um deles enterrou
o pai a seu modo. Em público, seguiam a posição da mãe, uma mulher que se
manteve altiva e digna, dura e fechada, mesmo quando já tinha se tornado um
ícone em defesa dos oprimidos.
Marcelo conta:
“Naquela tarde em que pegamos o atestado de óbito, em 1996, vi minha mãe então
chorar como nunca fizera antes. Era um urro. Não tinha lágrimas. Como se um
monstro invisível saísse da sua boca: uma alma. Um urro grave, longo,
ininterrupto. Como se há muito ela quisesse expelir [...]. Pela primeira vez na
minha frente, chorou tudo que tinha segurado, tudo o que reprimiu, tudo o que
quis. Foi um choro de vinte e cinco anos em minutos. O rompimento de uma
represa”. Agrada-me a maneira como o autor enxerga e expressa o mundo.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Li "Feliz Ano Velho" em 83, no primeiro ano de faculdade. Marcou-me bastante, especialmente porque o fatídico acidente ocorreu na Unicamp, bem perto de onde eu estudava. Grande Marcelo Paiva.
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