O sonho do meliante Guimarães
* Por
Nilto Maciel
Acordo sempre suado, o coração fogoso, gritando pela mulher, como se ela
pudesse me acudir e evitar minha queda. Ela se revira, me chama de danado, foge
de minhas mãos trêmulas, pula da cama, acende a luz, chora e berra. É sempre
madrugada, tem chovido fininho e faz um frio bom para se dormir.
– Como foi o sonho? Você sonhou comigo, Guimarães?
Perco o medo, sento-me, olho para aquela mulher comum e enjoada, e conto
tintim por tintim o sonho.
Da primeira vez fiz um barulho medonho. Gritei feito um doido e ela só
começou a entender o desastre depois que me viu estatelado no chão.
– Caiu da cama?
Nunca fui besta para dormir junto ao penico. E por que caí? Ela era
burra, uma pedra. Ainda tive coragem de medir as frases, escolher as palavras,
essa mania de querer ser mais inteligente do que ela, humilhá-la, deixá-la de
queixo caído, fazendo perguntas.
Muito alto, quase os píncaros do céu. Meus cabelos se confundiam com as
nuvens e as fumaças das fábricas. De repente anoiteceu e meus olhos brilharam
como estrelas e em minha boca despontou uma lua negra e do fundo da goela
saltou uma labareda, que só faltava queimar o caixão onde você dormia
desgrenhada, os seios para cima, para não os amassar. Besteira sua, pois a
subida era íngreme e por pouco a cama não despencou lá de cima com você e tudo,
apesar de minhas patas peludas se agarrarem aos buraquinhos da parede. Embaixo,
multidões berravam e erguiam os braços, à moda muçulmana, como querendo nos
aparar. Eu não entendia tanto delírio e ora chamava aquela malta de fascistas,
ora me apiedava deles, crente de que nos invejavam, impossibilitados de deixar
o chão.
Não sei mais direito a ideologia da história, mas posso ainda
engendrá-la à custa de uns apontamentos feitos horas após o sonho. Além disso,
no momento em que o narrava à mulher, perdi o fio da meada e, para não
demonstrar incapacidade, inventei outros enredos. Eu era uma enorme aranha que
carregava às costas um caixão e dentro dele a mulher nua e dormida, fugia de
uma catástrofe, os prédios ruíam, o povo arribava para as montanhas e, ao ver a
aranha abalando no rumo dos cimos gelados, além de onde voavam as espaçonaves,
punha-se a jogar grandes anzóis para o alto, picaretas que feriam o calcário,
na tentativa de salvação. No entanto a pedra poucas vezes agarrava a isca, e a
maioria daquele povo desesperado deixava de lançar seus instrumentos, embora
continuasse a olhar na direção do inseto, a erguer os braços e a blasfemar,
rogando a Deus que escorregássemos e caíssemos em seus tentáculos. Queriam meu
sacrifício, para depois me sepultar aos pés da parede.
Na segunda noite o sonho se encheu de detalhes e simbologias. Eu via a
aranha escalando o muro e ao mesmo tempo eu era o bicho.
– Homem-aranha – arengou a mulher.
– Muito horrível, você entende?
Ela não entendia. Apenas me achava para lá de doente, mais feio, preto e
cabeludo.
– Essa sua barba suja de baba vai me emporcalhar toda.
Eu pedia: traga o médico, e ela me falava de dificuldades. Onde iria
procurá-lo? Melhor irmos os dois aos hospitais, às clínicas, aos apartamentos,
aos clubes, aos estádios, às ruas. Impossível achá-lo por acaso. Ao me verem
naquele estado, os moleques iriam me atirar pedras, laranjas podres, ovos de
galinha. No tumulto, a polícia terminaria me levando preso, me espancando,
talvez me assassinando.
Passava os dias enfurnado em casa, procurando aranhas pelos quatro
cantos, para matá-las e queimá-las com cigarro aceso.
Agravava-se meu estado e terminei procurando o psiquiatra. Toquei com as
pontas dos dedos peludos a maciez do divã e me arrepiei. Melhor ficar de pé.
– Aranha não se senta em divã, doutor.
Fez-me contar um a um os sonhos. Queria tudo detalhado, límpido. E
tomava notas com a mãozinha vermelha. Ao final, achou-me perfeitamente são,
normal, pronto para voltar ao trabalho e ao convívio social.
– Eu mesmo sonho sempre fazendo amor com uma egípcia, no alto da Torre
Eiffel.
Procurei um padre. Só não suportava ouvir histórias bíblicas. Ele
sorriu, benzeu-se e quis me tocar. Tive medo e me afastei.
– Qual é o seu pecado, filho?
Fez-me perguntas e mais perguntas. O que eu sonhava, se eram
imoralidades, se com outra mulher ou algum homem. Perdoava-me, se reconhecesse
que o muro alcançava a Casa Eterna.
Não sei quem deu início ao processo. A prisão será o pior, porque
estarei sonhando perpetuamente. Melhor a pena de morte. Assim, não mais
sonharei, nem chegarei ao fim da escalada.
– Punição para o meliante Guimarães – estão gritando.
*
Escritor cearense
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