Devoradores de orelha
* Por
Marcelo Sguassábia
Somos os devoradores
de orelha, e viemos livrá-lo do mais avassalador infortúnio do mundo
pós-moderno: a falta de tempo. No caso, falta de tempo para ficar up-to-date
com o universo literário daqui e d'além mar. Nem que seja aquele leve e
basiquinho verniz cultural.
Os lançamentos
editoriais são tantos que, ainda que fosse feita a leitura só das orelhas, o
tempo dispendido seria enorme. Como conhecimento é o ouro do século 21, surgiu
dessa necessidade a ideia do nosso negócio.
Nossos leitores de
orelha, hoje totalizando 314 profissionais intensivamente treinados,
alternam-se em turnos estafantes de 12 ou mais horas e têm de recorrer a
técnicas de leitura dinâmica para darem conta de suas cotas diárias de resumos.
Lidas, cada orelha gera uma mini-sinopse que é enviada ao cliente via
eletrônica, com o básico que ele precisa saber para não passar vexame numa
conversa. Claro que o assinante do serviço determina as áreas de interesse
sobre as quais necessita manter-se atualizado.
Suponha uma saia justa
numa festa, onde perguntam a você o que achou de determinado livro. Basta
simular que o celular está chamando, você se afasta um pouco, consulta o resumo
de orelha correspondente e volta dominando o assunto. Em linhas bem gerais, mas
o suficiente para não chutar a bola para fora do estádio.
O serviço é eclético
nos gêneros e inclui também os resumos de orelha daquelas obras fundamentais,
que dão estofo à cultura geral do indivíduo. Grandes clássicos, como "Em
busca do tempo perdido", "A montanha mágica", "Dom
Quixote" e "Crime e Castigo" estão disponíveis para pronta
entrega. Não só na forma de e-resumos, mas de falso livro também. Em volumes
novíssimos, de capa dura, ou artificialmente manuseados por processo industrial
de envelhecimento. O recheio é em isopor, proporcionando leveza e facilidade na
remoção quando for a hora de tirar o pó da estante.
Oferecemos também uma
sensacional novidade, vinda há poucas semanas da Europa: o isopor com capa
refil. O cliente adquire a princípio apenas os isopores e vai trocando
periodicamente as capas com novidades e best-sellers da indústria editorial,
simulando uma pretensa atualização com o que de melhor vem chegando às
livrarias. É sua decisiva oportunidade de postar no Instagram e em outras redes
sociais fotos suas em frente à biblioteca-cenário, legando à sua extensa rede
de amigos a imagem de um erudito com sólida formação literária e artística.
Como em todo negócio
inédito e de sucesso, não demorou muito para que começasse a surgir
concorrência desleal. Alertamos a todos que o referido concorrente, o qual por
razões éticas não iremos citar o nome, deixou recentemente um ex-Presidente da
República em situação diplomática vexatória numa cerimônia de entrega de título
de Doutor Honoris Causa. Assinante do serviço, o popular ex-ocupante do
Alvorada precisou recorrer à mini-sinopse de uma obra de Santo Agostinho e
deparou-se com a orelha de "50 tons de cinza". Uma falha imperdoável,
que atribuímos à incompetência dos leitores de orelha desse relapso colega de
mercado.
* Marcelo Sguassábia é redator
publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Preciso ler orelhas urgentemente. Sei pouco demais.
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