Missão: Implausível
* Por
Fernando Yanmar Narciso
Fui dividido ao meio.
Numa ponta da gangorra está o grande clássico do cinema religioso-kitsch Os Dez
Mandamentos de 1956, obra-prima do carnavalesco diretor Cecil B. DeMille com
Charlton Heston, Yul Brynner e mais um metrequilhão de ilustres falecidos. Com
suas quase quatro horas de duração, cenários que praticamente engoliam a
audiência e efeitos visuais que estabeleceram o padrão hollywoodiano que outros
tentariam superar pelos próximos 70 anos, eis um filme que parecia, desde o
lançamento, intocável no topo da pirâmide.
E na outra ponta da
gangorra? Mesmo sendo ateu e, ironicamente, fã do filme original, via com algum
receio as notícias sobre Êxodo: Deuses e Reis, uma recontagem moderna da fábula
de Moisés dirigida pelo britânico Ridley Scott, que não gozava de grande
credibilidade há um bom tempo em Hollywood. Estrelado pelo eterno Cavaleiro das
Trevas Christian Bale, as críticas ao filme têm sido cruéis desde seu
lançamento.
Creio que fãs do filme
original esperavam por um remake fiel a ele e à Bíblia Sagrada, apenas com os
clássicos efeitos da divisão do Mar Vermelho e afins atualizados e exagerados
pela computação gráfica moderna. Não se satisfariam com nada além disso.
Considerando que outros épicos bíblicos do ano passado, como Noé, foram
fracassos retumbantes por terem “inventado demais” em cima das escrituras, a
pressão sobre Scott era mais que compreensível.
Outro fator que
aumentou as dúvidas do público durante a produção é que tanto Scott como Bale
são ATEUS. Podem imaginar o que um diretor e um ator que não acreditam em
divindades poderiam fazer com uma das histórias mais conhecidas do Grande
Livro? Pelo menos para mim, o resultado foi magnífico! Ainda considero o filme
de DeMille incrível, mas Êxodo fez por enxotá-lo do topo da pirâmide.
Como as produções
acima citadas e a série de ação A Bíblia tentaram provar, não é preciso fazer
um clone perfeito das palavras contidas no peso para papel mais vendido do
mundo para contar uma história cativante. Comparar Êxodo ao clássico da década
de 50 é como tentar comparar Dias Gomes a Nicholas Sparks, não poderia haver
muro mais grosso entre dois autores.
Para nossa sorte,
aquele dramalhão exagerado da década de 50 já era. O histórico Moisés de
Charlton Heston era um prodígio, um Clark Kent que se convertia em Superman
após falar com Deus. Em contrapartida, Bale interpreta um general mais
racional, lacônico e, acima de tudo, cético. Em outras palavras, Christian Bale
interpreta novamente uma versão do Batman.
Enquanto o clássico
herói mais parecia um títere do Divino, seguindo cada ordem Dele à risca, a
maneira como o Moisés de Bale tem sua revelação pode até soar ofensiva aos mais
carolas: Escalando o Monte Sinai, ele é vitimado por uma avalanche, leva uma pedrada
na cabeça e acorda soterrado num poço de barro.
A sarça em chamas
ainda está lá, mas não é com ela que Bale interage. A figura de Deus agora é
personificada por um moleque enfezado e desaforado (Ben Mandelson). O general e
a aparição vivem às turras o filme todo! Sendo também um ex-oficial do exército
egípcio, Moisés primeiro tenta combater a crueldade do faraó organizando uma
milícia de escravos hebreus e atacando as cidades por dentro. Antes tivesse
mantido tal estratégia, assim morreria menos gente...
Mesmo sendo Moisés uma
peça-chave, a verdadeira estrela do filme é a cólera divina. Se DeMille ainda
fosse vivo, seria capaz de dar um braço, uma perna e o pescoço em troca dos
efeitos especiais deste filme, o primeiro em 3-D que eu consegui gostar. Como o
filme é feito com uma visão ateísta, há uma explicação científica para cada uma
das sete pragas lançadas pelo menino birrento sobre o Egito.
Ele envia ao rio Nilo
um bando de crocodilos famintos do tamanho do Godzilla, que se divertem tanto
devorando pescadores e a si mesmos que literalmente transformam as águas do rio
em sangue, como naquelas fotos horríveis de pesca de golfinhos no Japão. A isso
se seguem a praga de sapos, moscas, gafanhotos, o surto de lepra e a morte dos
animais de carga, tudo retratado com realismo desconcertante.
Enquanto Heston
canalizava os poderes divinos através de seu bastão, Bale é um mero expectador
das catástrofes, e não pode fazer nada além de esperar que Ramsés (Joel
Edgerton) largue a rapadura e liberte os escravos. Falando nele, o Divino é tão
implacável em sua vingança pra libertar os hebreus que a gente quase fica do
lado do faraó, o suposto vilão do filme. Algo inimaginável quanto ao personagem
criado por Yul Brynner em 1956, que permanece um dos mais detestáveis da história
do cinema.
Mesmo após cumprir sua
tresloucada missão de levar 400.000 escravos ao Monte Sinai, o Moisés moderno
ainda se questiona se fez o que fez por ordem de Deus ou se esteve delirando
todo aquele tempo. O ator galês provavelmente chegou mais próximo da figura
histórica (se é que ela existiu) do que o profeta eloqüente, carismático e dono
da verdade que usava uma imaculada túnica vermelha enquanto batia perna por 40
anos no deserto.
Para encerrar a
análise, um chiste: Se Deus, de acordo com a Bíblia, podia repartir o Mar
Vermelho com um espirro, nem quero imaginar qual função corporal Ele usou para
provocar o inacreditável Tsunami nesse filme...
*
Escritor e designer gráfico. Contatos:
HTTP://www.facebook.com/fernandoyanmar.narciso
cyberyanmar@gmail.com
Conheçam
meu livro! http://www.facebook.com/umdiacomooutroqualquer
Confiram
a análise do filme original aqui:
http://www.minaslivre.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1916:pelos-chifres-do-profeta&catid=56:fernando-yanmar-narciso&Itemid=64
Uma agradável e delirante análise. Os religiosos não gostarão do que disse, e poderão ficar irados também, como o Deus que você analisa as ações. Espero que não lhe aconteça nenhum ataque terrorista.
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