sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Missão: Implausível


* Por Fernando Yanmar Narciso


Fui dividido ao meio. Numa ponta da gangorra está o grande clássico do cinema religioso-kitsch Os Dez Mandamentos de 1956, obra-prima do carnavalesco diretor Cecil B. DeMille com Charlton Heston, Yul Brynner e mais um metrequilhão de ilustres falecidos. Com suas quase quatro horas de duração, cenários que praticamente engoliam a audiência e efeitos visuais que estabeleceram o padrão hollywoodiano que outros tentariam superar pelos próximos 70 anos, eis um filme que parecia, desde o lançamento, intocável no topo da pirâmide.

E na outra ponta da gangorra? Mesmo sendo ateu e, ironicamente, fã do filme original, via com algum receio as notícias sobre Êxodo: Deuses e Reis, uma recontagem moderna da fábula de Moisés dirigida pelo britânico Ridley Scott, que não gozava de grande credibilidade há um bom tempo em Hollywood. Estrelado pelo eterno Cavaleiro das Trevas Christian Bale, as críticas ao filme têm sido cruéis desde seu lançamento.

Creio que fãs do filme original esperavam por um remake fiel a ele e à Bíblia Sagrada, apenas com os clássicos efeitos da divisão do Mar Vermelho e afins atualizados e exagerados pela computação gráfica moderna. Não se satisfariam com nada além disso. Considerando que outros épicos bíblicos do ano passado, como Noé, foram fracassos retumbantes por terem “inventado demais” em cima das escrituras, a pressão sobre Scott era mais que compreensível.

Outro fator que aumentou as dúvidas do público durante a produção é que tanto Scott como Bale são ATEUS. Podem imaginar o que um diretor e um ator que não acreditam em divindades poderiam fazer com uma das histórias mais conhecidas do Grande Livro? Pelo menos para mim, o resultado foi magnífico! Ainda considero o filme de DeMille incrível, mas Êxodo fez por enxotá-lo do topo da pirâmide.

Como as produções acima citadas e a série de ação A Bíblia tentaram provar, não é preciso fazer um clone perfeito das palavras contidas no peso para papel mais vendido do mundo para contar uma história cativante. Comparar Êxodo ao clássico da década de 50 é como tentar comparar Dias Gomes a Nicholas Sparks, não poderia haver muro mais grosso entre dois autores.

Para nossa sorte, aquele dramalhão exagerado da década de 50 já era. O histórico Moisés de Charlton Heston era um prodígio, um Clark Kent que se convertia em Superman após falar com Deus. Em contrapartida, Bale interpreta um general mais racional, lacônico e, acima de tudo, cético. Em outras palavras, Christian Bale interpreta novamente uma versão do Batman.

Enquanto o clássico herói mais parecia um títere do Divino, seguindo cada ordem Dele à risca, a maneira como o Moisés de Bale tem sua revelação pode até soar ofensiva aos mais carolas: Escalando o Monte Sinai, ele é vitimado por uma avalanche, leva uma pedrada na cabeça e acorda soterrado num poço de barro.

A sarça em chamas ainda está lá, mas não é com ela que Bale interage. A figura de Deus agora é personificada por um moleque enfezado e desaforado (Ben Mandelson). O general e a aparição vivem às turras o filme todo! Sendo também um ex-oficial do exército egípcio, Moisés primeiro tenta combater a crueldade do faraó organizando uma milícia de escravos hebreus e atacando as cidades por dentro. Antes tivesse mantido tal estratégia, assim morreria menos gente...

Mesmo sendo Moisés uma peça-chave, a verdadeira estrela do filme é a cólera divina. Se DeMille ainda fosse vivo, seria capaz de dar um braço, uma perna e o pescoço em troca dos efeitos especiais deste filme, o primeiro em 3-D que eu consegui gostar. Como o filme é feito com uma visão ateísta, há uma explicação científica para cada uma das sete pragas lançadas pelo menino birrento sobre o Egito.

Ele envia ao rio Nilo um bando de crocodilos famintos do tamanho do Godzilla, que se divertem tanto devorando pescadores e a si mesmos que literalmente transformam as águas do rio em sangue, como naquelas fotos horríveis de pesca de golfinhos no Japão. A isso se seguem a praga de sapos, moscas, gafanhotos, o surto de lepra e a morte dos animais de carga, tudo retratado com realismo desconcertante.

Enquanto Heston canalizava os poderes divinos através de seu bastão, Bale é um mero expectador das catástrofes, e não pode fazer nada além de esperar que Ramsés (Joel Edgerton) largue a rapadura e liberte os escravos. Falando nele, o Divino é tão implacável em sua vingança pra libertar os hebreus que a gente quase fica do lado do faraó, o suposto vilão do filme. Algo inimaginável quanto ao personagem criado por Yul Brynner em 1956, que permanece um dos mais detestáveis da história do cinema.

Mesmo após cumprir sua tresloucada missão de levar 400.000 escravos ao Monte Sinai, o Moisés moderno ainda se questiona se fez o que fez por ordem de Deus ou se esteve delirando todo aquele tempo. O ator galês provavelmente chegou mais próximo da figura histórica (se é que ela existiu) do que o profeta eloqüente, carismático e dono da verdade que usava uma imaculada túnica vermelha enquanto batia perna por 40 anos no deserto.

Para encerrar a análise, um chiste: Se Deus, de acordo com a Bíblia, podia repartir o Mar Vermelho com um espirro, nem quero imaginar qual função corporal Ele usou para provocar o inacreditável Tsunami nesse filme...

* Escritor e designer gráfico. Contatos:
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Conheçam meu livro! http://www.facebook.com/umdiacomooutroqualquer


Confiram a análise do filme original aqui: http://www.minaslivre.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1916:pelos-chifres-do-profeta&catid=56:fernando-yanmar-narciso&Itemid=64

Um comentário:

  1. Uma agradável e delirante análise. Os religiosos não gostarão do que disse, e poderão ficar irados também, como o Deus que você analisa as ações. Espero que não lhe aconteça nenhum ataque terrorista.

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