Nua
profissional
* Por Gustavo Carmo
Paladiane Álgebra é filha única de
um químico com uma professora de matemática. Cresceu entre átomos, tabelas
periódicas, progressões aritméticas e geométricas, equações, geometrias e
fórmulas por todos os lados. O próprio primeiro nome é uma derivação de
Paládio, nome de um metal branco presente na tabela periódica, que forma o
grupo da Platina, e que foi batizado em homenagem à Pallas, deusa da sabedoria na mitologia grega. Por isso foi
escolhido pelo pai, Apolo. O segundo foi imposição da mãe, Norma.
Marido e mulher discutiam sobre a
profissão da menina quando adulta. O pai desejava que ela fosse química como
ele, enquanto a mãe insistia que ela deveria ser uma matemática famosa.
Brigaram por causa desta bobagem durante quinze anos.
Alheia a discussão dos pais, Paladiane
sonhava em se tornar filósofa. Desde os oito lia livros volumosos sobre os
grandes pensadores da humanidade. Decorava com facilidade todos os complexos
pensamentos dos grandes mitos, como Tales de Mileto, Pitágoras, Sócrates, Galileu,
Hume, Kant, Marx, Bernard Williams, Camus, Comte, Nietzsche, McDowell, entre
outros.
Por conta destes estudos que
ainda nem estavam em seu programa escolar – apenas em breves verbetes nos
livros de história - era uma menina inteligente. Tirava 10 em tudo, inclusive
nas disciplinas preferidas dos seus pais, o que acirrava a rivalidade entre
eles.
Contudo, ao mesmo tempo em que a
filosofia a ajudava tornar uma menina inteligente e madura para os seus doze
anos, também a impedia de fazer muitos amigos e conquistar os meninos que
desejava. As colegas só a procuravam para colar e jogar suas fúteis conversas
fora. Pelas suas costas a chamavam de CDF, chata e bicho-do-mato.
Paladiane não era uma menina
feia. Também não era o padrão de beleza da juventude masculina. Tinha cabelos
negros até a cintura. Magrinha, baixinha e muito tímida. Olhos levemente
puxados. Não usava óculos como muitas meninas inteligentes e tímidas. O que
assustava os meninos não era o seu dente avançado que lhe dava o apelido de esquilinha, odiado por ela, e sim uma
grande mancha roxa de nascença em volta do seu olho esquerdo. Disfarçava com o
cabelo. Sofria muito preconceito. Pela marca, pela timidez, pela inteligência e
pelos nomes. Era motivo de piada por todas as escolas por onde passou.
Só atraía a atenção dos meninos
mais ingênuos. E feios também. Como Arthurzinho, um gordinho de óculos grossos,
loirinho e sardento. Apesar de bondosa, ela preferia um menino inteligente e
bonito, como Pedro, que a desprezava porque a achava horrorosa, boboca e
chata.
Aos dezoito anos, iniciando a
faculdade de filosofia, apaixonou-se por Emílio, um colega de sala lindo e
simpático. Paladiane já tinha corpo de mulher. Seus seios não cresceram muito,
mas sua bunda fora arredondada e inflada pela fase adulta. Os dentes de
esquilinha desapareceram com o apelido, graças ao uso de um aparelho dentário.
Apenas a mancha roxa continuava em seu olho esquerdo.
Emílio estava mais interessado no
corpo de Paladiane do que na amizade, que mantinha apenas para levá-la pra cama
e ganhar alguma ajuda nos constantes trabalhos em dupla. Cegamente
apaixonada, a moça aceitava tudo o que ele pedia e fazia. Não desconfiava das
verdadeiras intenções do rapaz.
Em uma noite de sábado, ele
conseguiu. Convidou a amiga de nome estranho para uma balada. Paladiane nunca tinha
ido a uma discoteca na vida. Passou a infância e a adolescência estudando os
livros de seus filósofos preferidos. Hesitou bastante, mas foi. Depois da festa
de aniversário de um amigo de infância, Emílio levou Paladiane a um motel e
tirou a sua virgindade.
Na segunda-feira seguinte,
apaixonada, declarou o seu amor e perguntou quando eles sairiam de novo. Ela
fazia planos para apresentá-lo aos seus loucos pais. Emílio a cortou
amargamente:
— Cai fora, garota manchada! Eu
sou noivo. Só queria fazer sexo com você.
O mundo de Paladiane veio abaixo.
Sua vista turvou-se e o céu escureceu. Saiu correndo da sala e foi chorar no
jardim do campus da faculdade. Foi consolada por Plínio, um rapaz moreno, cheio
de espinhas e de aparência fechada que a menina com nome de elemento químico e
princípio da matemática achava antipático. Plínio era apaixonado por Paladiane,
mas sabia da paixão da amada por Emílio. Não quis aproveitar-se da situação.
Apenas a confortou em seu peito magro, quase esquelético.
Apesar do conforto de Plínio,
Paladiane quis largar a faculdade. Ganhou convicção ao ver a noiva de Emílio,
uma morena de cabelos oxigenados, seios que pareciam explodir de tanto silicone
e mal cabiam na camiseta branca, além de micro-saia. Ah! Já ia me esquecendo:
era burra e fútil, como as amigas da quinta série.
Após um dia de praia com Plínio,
que tornou-se o seu melhor amigo, Paladiane refletiu e achou melhor trocar a
filosofia pelo jornalismo. Ao mesmo tempo, tomou uma providência. Anotou o
endereço de várias revistas masculinas, impressas ou na internet, tirou fotos
de topless e distribuiu para as publicações, mesmo as mais vulgares. Fez,
também, um book comportado para agências de modelo. Pensou: “Se os homens não
aceitam uma mulher culta, serei mais uma desinibida para satisfazê-los”.
Paladiane continuou na faculdade
de filosofia por mais alguns meses para terminar o semestre. Mesmo
desinteressada pela carreira que sonhou desde criança, foi aprovada em todas as
disciplinas. Porém, em algumas com nota mínima que tirou pela primeira vez. Com
muita dor no coração, trancou a matrícula e fez vestibular para jornalismo no
segundo semestre. Passou em primeiro lugar. Também não teve coragem de jogar fora
os livros de filosofia. Apenas os guardou no baú de coisas velhas. Queria ser
vulgar, mas nunca deixou de ser inteligente.
Os pais, esperançosos de que a
filha trocasse a filosofia pela profissão que ambos desejavam, voltaram a
discutir. O pai pela química. A mãe pela matemática. Ficaram frustrados ao
descobrir que Paladiane preferiu o jornalismo. Não entenderam porque a menina
abandonou a profissão que tanto sonhava. Paladiane explicou toda a história.
Liberais, os pais respeitaram a
decisão da filha de trocar a faculdade, mas acharam que ela exagerou e não deveria
ter desistido de um sonho por causa de um imbecil e cafajeste. Aprovaram a troca
da filosofia pelo jornalismo, mas não dela querer posar nua e fazer da
exposição de seu corpo uma profissão.
Três meses depois, foi convidada
para um ensaio de uma revista de moda. Vestida. Depois, posou para um site
sensual. De biquíni. Veio outro site e tirou a roupa pela primeira vez. Só não
mostrou. Cobriu-se com a mão, deitou-se ou foi fotografada de costas. Com os
cachês, comprou um carro.
Recebeu o tão esperado convite
para posar e mostrar-se inteiramente nua para a mais famosa revista masculina.
Enquanto muitas mulheres ficam nervosas ao fotografarem sem roupa, bebem vinho para
ficarem calmas e preferem ficar sozinhas com o fotógrafo, Paladiane deixou-se
fotografar com tanta serenidade que parecia estar nas nuvens, além de não ter
se incomodado com a plateia de mil pessoas que se formou na praia que serviu de
locação.
As dez fotos não saíram na capa
da revista. Na que abre o ensaio, ela está deitada na areia com o corpo erguido
para mostrar-se de frente, revelando os seios pequenos de auréola média e
caramelizada e pêlos pubianos aparados nos cantos da virilha. No título, “PALADIANE
ÁLGEBRA – ESTA MISTURA É MUITO BOA” e abaixo, a descrição de que ela é filha de
um químico com uma matemática, explicando a origem do seu nome, que serviu de
trocadilho para a abertura do ensaio. Em outra foto, ela está com uma lingerie branca
suspensa para mostrar o seu recheado bumbum. Na legenda: “Já fui desprezada”. O
ensaio termina com uma foto em preto e branco dela dormindo, com a mão no
rosto, cobrindo a sua marca de nascença. Escondida, na maioria, pelos longos
cabelos, a mancha não aparece em nenhuma foto e sequer é citada no texto.
Mesmo assim, Paladiane fez
sucesso. Foi convidada para ser madrinha de bateria de uma escola de samba
recém-promovida ao grupo especial do carnaval carioca. Sua fantasia era apenas
a purpurina, o esplendor e o tapa-sexo. Foi a sua apoteose.
Virou celebridade. Apareceu
vestida na capa de todas as revistas do gênero. Ganhou um programa de
entrevistas na televisão. Apresentou até um telejornal (ela formou-se em
jornalismo, não se esqueçam). Casou-se com um jogador de futebol, para
desespero de Plínio, que cortou os pulsos. Paladiane ficou rica. Paladiane
queria mais. Queria continuar nua. Foi rainha de bateria no carnaval por mais
vinte anos. Todos sem fantasia, praticamente. Exibiu seu corpo desprovido de
roupas mais uma vez.
Desta, foi capa da segunda maior
revista masculina do país, concorrente ferrenha da publicação multinacional
pela qual posou pela primeira vez. Capa apenas, não. Contratada vitalícia.
Na estréia, interpretou o papel
de uma cafetina e escolheu um bordel como cenário. A cada mudança de corpo, seja
natural ou através de plásticas, o exibia sem pudores. Os seios siliconados foram
mostrados três vezes. Cada vez de um tamanho ainda maior. Mostrou a mancha nos
olhos pela primeira vez, já no décimo quinto ensaio. Antes do décimo oitavo,
fez uma plástica em que tirou a marca de nascença. Mostrou o novo rosto. Posou
grávida duas vezes. Posou depois de dar à luz. Posou aos quarenta. Aos
cinqüenta. Aos sessenta. Setenta. Oitenta. Noventa. Cem.
Morreu realizada uma semana
depois do inédito ensaio de uma centenária chegar às bancas. Morreu vingada de
Emílio e todos os homens, que só a desejavam pelo seu corpo e não por sua
inteligência. Deixou-os satisfeitos. Paladiane mostrou-se nua para eles até os
últimos dias de sua vida.
* Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou
o romance “Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a
coletânea “Indecisos - Entre outros contos”.
Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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