sábado, 13 de dezembro de 2014

Basta a maldade da doença


* Por Donald Malchitzky

A pior coisa que pode acontecer a um homem é pegar AIDS da própria mulher; os amigos vão dizer que ele é bicha e ele vai saber que é corno”. A piada infame corria solta nos anos 1980 e início dos 90,  quando a doença se espalhou pelo mundo. Associada ao homossexualismo,  e a uma vida depravada, a AIDS era, para muitos, sinônimo de pecado.

Nesse cenário, envolvi-me com a comissão municipal de combate à AIDS em São Bento do Sul. Éramos um grupo heterogêneo e desinformado – não mais de dois ou três conheciam mais profundamente a doença – e começamos treinando a nós mesmos. Aprendemos formas de contágio a como colocar um preservativo. E saímos a campo.

Montamos um treinamento de meio dia sobre AIDS e drogas para mais de 600 professores, fomos às ruas distribuindo flores, camisinhas e folhetos, fizemos centenas de palestras em escolas, empresas, acontecimentos públicos – num dia, fiz 65 “palestras relâmpago”, sempre para quatro ou cinco pessoas, num evento público – na cadeia, para caminhoneiros e nos prostíbulos.

Havia risos e algumas tristezas, mas sobrou muita alegria: numa ida ao prostíbulo – quatro mulheres, integrantes da comissão,  e eu -, a motorista, meio aluada,  pegou o acesso a um motel;  olhei para ela e esclareci: “Hoje não consigo”. No mesmo dia, uma das moças passou o tempo inteiro desafiando quem falava ou coordenava alguma dinâmica; lá pelas tantas, mudou o comportamento; ao final, agradeceu e pediu material para levar às amigas em outro local. Nos dias 1º de dezembro – Dia Mundial de Luta contra a AIDS – fizemos de tudo, inclusive colocar prostitutas, nosso pessoal e autoridades abordando pessoas nas ruas, parando carros etc.; uma integrante da comissão, ao passar na frente de duas senhoras, ouviu a frase, dita com nojo: “Essa é uma delas”.  À meia-noite, fomos a uma danceteria lotada, falar sobre a doença. Maior agito, pararam a música e eu sem saber o que dizer; comecei: “Sua mãe pode ter AIDS”. Silêncio sepulcral e consegui falar durante 10 minutos.

Um secretário da saúde de outra cidade pediu nossa ajuda, mas advertiu que não poderíamos falar de camisinha, pois a religião dele era contra seu uso. Campanhas religiosas apelavam para o pecado e condenavam o trabalho de prevenção, portadores do vírus eram discriminados. Lutamos contra isso e bem mais, assim como fazem milhares de pessoas, num trabalho que tem que continuar, pois são 35 milhões de portadores ao redor do mundo, e mais da metade nem sabe disso. De maldade, já basta a da doença.


* Escritor

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