Basta a maldade da doença
* Por
Donald Malchitzky
“A pior coisa que pode
acontecer a um homem é pegar AIDS da própria mulher; os amigos vão dizer que
ele é bicha e ele vai saber que é corno”. A piada infame corria solta nos anos
1980 e início dos 90, quando a doença se
espalhou pelo mundo. Associada ao homossexualismo, e a uma vida depravada, a AIDS era, para
muitos, sinônimo de pecado.
Nesse cenário, envolvi-me
com a comissão municipal de combate à AIDS em São Bento do Sul. Éramos um grupo
heterogêneo e desinformado – não mais de dois ou três conheciam mais
profundamente a doença – e começamos treinando a nós mesmos. Aprendemos formas
de contágio a como colocar um preservativo. E saímos a campo.
Montamos um treinamento
de meio dia sobre AIDS e drogas para mais de 600 professores, fomos às ruas
distribuindo flores, camisinhas e folhetos, fizemos centenas de palestras em
escolas, empresas, acontecimentos públicos – num dia, fiz 65 “palestras
relâmpago”, sempre para quatro ou cinco pessoas, num evento público – na
cadeia, para caminhoneiros e nos prostíbulos.
Havia risos e algumas
tristezas, mas sobrou muita alegria: numa ida ao prostíbulo – quatro mulheres,
integrantes da comissão, e eu -, a
motorista, meio aluada, pegou o acesso a
um motel; olhei para ela e esclareci:
“Hoje não consigo”. No mesmo dia, uma das moças passou o tempo inteiro
desafiando quem falava ou coordenava alguma dinâmica; lá pelas tantas, mudou o
comportamento; ao final, agradeceu e pediu material para levar às amigas em
outro local. Nos dias 1º de dezembro – Dia Mundial de Luta contra a AIDS –
fizemos de tudo, inclusive colocar prostitutas, nosso pessoal e autoridades abordando
pessoas nas ruas, parando carros etc.; uma integrante da comissão, ao passar na
frente de duas senhoras, ouviu a frase, dita com nojo: “Essa é uma delas”. À meia-noite, fomos a uma danceteria lotada,
falar sobre a doença. Maior agito, pararam a música e eu sem saber o que dizer;
comecei: “Sua mãe pode ter AIDS”. Silêncio sepulcral e consegui falar durante
10 minutos.
Um secretário da saúde
de outra cidade pediu nossa ajuda, mas advertiu que não poderíamos falar de
camisinha, pois a religião dele era contra seu uso. Campanhas religiosas
apelavam para o pecado e condenavam o trabalho de prevenção, portadores do
vírus eram discriminados. Lutamos contra isso e bem mais, assim como fazem
milhares de pessoas, num trabalho que tem que continuar, pois são 35 milhões de
portadores ao redor do mundo, e mais da metade nem sabe disso. De maldade, já
basta a da doença.
*
Escritor
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