domingo, 30 de novembro de 2014

Convivência com a dor

* Por Pedro J. Bondaczuk


A dor é um mecanismo de alerta de que a natureza nos dotou para avisar que algo não está bem em nosso organismo. É, portanto, sintoma e não a própria doença. Além do que, muitas vezes, é subjetiva. Se uma pessoa, por exemplo, se queixa que alguma parte (ou várias) do seu corpo está doendo, não há como confirmar, ou desmentir. Ninguém pode afirmar, categoricamente, que esteja dizendo a verdade ou mentindo. Isso, mesmo que os mais acurados exames médicos comprovem que ela está absolutamente saudável, com “saúde para dar e vender”, como se diz amiúde.

A farmacologia desenvolveu vasta gama de medicamentos – alguns, com gravíssimos efeitos colaterais, daí ser tremenda imprudência, senão rematada e perigosíssima burrice, a auto-medicação, tão comum, mundo afora – para aplacar a dor. Os especialistas na matéria, porém, sabem, de sobejo, que não deve ser ela a ser combatida, mas o que a causa. Nem sempre, porém, isso é possível. Há doenças que ainda são incuráveis (pelo menos em estágios mais avançados). Nestes casos, é até questão humanitária o alívio, posto que momentâneo, do sofrimento.

Nem só os doentes, porém, têm que conviver freqüentemente com a dor. O oposto, ou seja, as pessoas com saúde invejável, que se destacam da maioria por seus privilegiados dotes físicos, com musculatura, ossatura e metabolismo perfeitos, também são forçadas a essa incômoda convivência. E como!

Refiro-me, especificamente, aos atletas e, mais particularmente, àqueles classificados como de “alto rendimento”, que superam recordes e mais recordes em pistas, quadras, campos e piscinas e conquistam títulos e mais títulos, inúmeras medalhas de ouro em suas respectivas modalidades (coletivas ou individuais, não importa) em competições de ponta como Olimpíadas e Campeonatos Mundiais. São os que ampliam os limites físicos do ser humano, pela força, resistência, velocidade e/ou impulsão que têm, muito além do que é tido como “normal”.

Estes têm sempre uma certeza: para chegar onde pretendem, vão conviver, pelo tempo em que durarem suas carreiras esportivas, com a dor. E não me refiro, apenas, às freqüentes lesões musculares, de articulação, ósseas, dos joelhos, das coxas, da virilha, da coluna etc. causadas ora pelo esforço repetitivo dos intermináveis treinamentos, ora por traumatismos de diversas causas, intensidades e naturezas.

A vida de um atleta de ponta nunca é fácil. Ademais, ele jamais tem a garantia de que seu empenho, sua autodisciplina, sua força de vontade e tantas outras virtudes que caracterizam campeões, serão suficientes para alcançar o tão almejado sucesso. Seus adversários são do mesmo nível, têm os mesmíssimos objetivos e as mesmas cargas de treinamentos e podem mostrar essas mesmas características em grau muito maior e, dessa forma, superá-los.

Em qualquer competição, seja de que natureza for, haverá, seguramente, um, e apenas um, vencedor. E este pode não ser você, caso seja o atleta de alto rendimento a que me refiro, a despeito de todo o sacrifício – não raro sobre-humano – a que se submeteu, das privações pelas quais teve que passar, dos investimentos, sacrifícios e, sobretudo, dores que teve que fazer e suportar.

Quando o “fracasso” sobrevém – e, no seu caso, é representado, não raro, pelo segundo lugar, pela honrosa e valiosa medalha de prata – lá vai ele para novos e mais duros ainda treinamentos. Toca a se submeter a rigorosíssimas dietas, a forçar os músculos muito além do que já forçou, a correr mais veloz, a saltar mais alto ou mais distante, a nadar mais rápido, a levantar maior peso etc. para superar seus limites que, a rigor, nunca sabe quais são. Toca repetir, repetir e repetir movimentos, cada vez com maior intensidade, tendo como resultado, com certeza, imensas dores. Mas, se quiser vencer, tem que, não somente as ignorar, como se acostumar a elas, suportá-las, se possível ignorá-las, numa perpétua, mesmo que (claro) incômoda, convivência.

O artista de alto rendimento – o que faz arte não por mero diletantismo, ocasionalmente, mas como missão de vida – tem realidade muito parecida com a dos atletas com potencial de campeões. Precisa, também, aprender a conviver com a dor (posto que não necessariamente a física e, portanto, mais difícil de ser suportada). A disciplina a que tem que se submeter é, guardadas as devidas proporções, tão rígida e constante quanto a do atleta. Aliás, maior até do que a dele, pois não terá a mera duração de uma carreira, como é o caso do esportista, mas dura a vida toda.

O artista de alto rendimento, por exemplo, não tem a prerrogativa de fugir de lembranças amargas e dolorosas, de sentimentos caóticos e contraditórios e de idéias polêmicas e, por isso, incômodas, quando não perigosas, como os “mortais comuns”. Longe disso. Compete-lhe, isso sim, fazer de tudo o que o judia, oprime, machuca e às vezes desnorteia, matéria-prima para a geração do oposto de tudo isso. Ou seja, de beleza, de poesia, de ternura, de otimismo e... de transcendência. Exagero meu? Longe disso! Quem é artista de alto rendimento sabe muito bem a que me refiro.
       
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk 

Um comentário:

  1. Eu me obrigo a escrever dois textos por semana e alguns comentários todos os dias, mas não sou artista, e menos ainda de alto rendimento.

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