O retrato cubista de Marina Silva
* Por
Urariano Mota
Mais de uma pessoa já
notou o quanto Marina Silva se tornou feia, em menos de 30 dias. No seu
natural, ela nunca foi bonita. Mas havia nela uma face que, sem ser um feitiço
para os olhos, despertava em toda a gente um afeto, uma admiração, uma, já
disse o bloco de carnaval do Rio de Janeiro, uma simpatia que era quase amor.
Agora, não. Aquela voz que jamais anunciaria voo de avião no aeroporto,
desagradável, áspera, aguda, agora vem trêmula, vacilante, mecânica, que lembra
mais um discurso de robô em peito de lata.
E aqui eu faço uma
breve suspensão para o cubismo. Com absoluta certeza, muitos já viram quadros
de Picasso, em especial o “Retrato de Dora Maar”. Ou melhor, para maior choque, o quadro “Dora
Maar com gato”. Para a nossa vista acostumada a volumes, ou à ilusão de volume
que tem um desenho em perspectiva, o quadro é um horror. É um quadro cubista. Isso quer dizer: no
cubismo, os objetos e pessoas representadas quebram-se em muitas faces,
decompõem-se. O artista procura a visão total da figura, examinando-a em todos
os ângulos ao mesmo tempo. E devido à fragmentação excessiva dos objetos,
torna-se quase impossível a identificação da figura original. A pintura
apresenta duas, três ou mais caras juntas em um mesmo rosto.
Pois assim tem sido
Marina Silva. No último debate dos candidatos na Band, as suas muitas faces em
um só plano eram quebradas, fragmentadas, expostas, mas reunidas todas em um só
rosto. Mas sem harmonia para os olhos, aqui substituídos pelo que conhecemos
dela. Por exemplo, ao ser questionada sobre as idas e vindas em São Paulo,
sobre a sua candidatura estar ao lado de Alckmin e ao mesmo tempo não estar,
ela afirmou: “Eu me sinto inteiramente coerente”. Aí vêm as coerências de um
rosto cubista, porque assim falou Marina Silva: “Quando eu disse que não ia
subir nos palanques que havia antes acordado com o nosso saudoso Eduardo
Campos...” Notem o saudoso de passagem, mas saudade aí tem um conteúdo bem
diferente do sentir falta.
Mas continuemos a
reproduzir a fala da Marina saudosa, no sentido de quem tem uma alegre saudade:
“Quando eu digo que quero governar com os melhores do PT, do PSDB e do PMDB...”
Notem que ela substitui uma harmonia de ideias e valores partidários por uma
seleção de melhores. Ótimo, para os ingênuos. Mas sob qual critério, os
melhores serão eleitos por Marina, ela própria, que se acha a melhor dos
melhores? E continua a rara orquídea decomposta em faces de um cubo: Ela criará
o “Estado Mobilizador”, mas que diabo será isso? Uma injeção para uma corrida
de 100 metros rasos? Não, é o Estado que nem é mínimo nem é provedor – e
provedor vocês sabem o que é: é o Estado do Minha Casa, Minha Vida, por
exemplo. Já o Estado Mobilizador é aquele capaz de mobilizar a iniciativa
privada, empreendedorismo social, no atendimento das necessidades da
população... Pelamordedeus: onde já se viu a iniciativa privada atender às
necessidades da população? O valor do empresário, d aqueles mais
empreendedores, é o lucro. Ponto.
Mas continuemos em
outras faces e fases de Marina que ela justapõe no mesmo rosto. No debate da
Band ela cravou: “Quero combater essa visão de apartar o Brasil, de que temos
de combater as elites. O Guilherme, da Natura, faz parte da elite, mas os
ianomâmis também. A Neca é parte da elite, mas o Chico Mendes também é parte da
elite. Essa visão tacanha de ter de combater a elite deve ser combatida”. Meus
amigos, essa eu vi e ouvi. Isso valeria para um atestado de óbito de um
ex-militante socialista. Mas em Marina é apenas mais uma absurda face. A Neca,
no caso, é acionista e herdeira do Banco Itaú, que para Marina é apenas uma
educadora social. O Guilherme é um chapa, um cara legal, desinteressado,q eu
joga dinheiro fora por nada, só por amor ao retrato de Dora Maar. E Chico
Mendes, bem, é aquele cara que foi morto na luta na floresta. Mas todos estão
juntos e na elite, lado ao lado dos ianomâmis. Não é piada, é um escárnio, que
já vem pronto.
“O senhor Leal, da
Natura, deve bilhões ao fisco”, respondeu Fidelix, outro candidato. E
mais: “A gente sabe também que o banco
Itaú não quer pagar R$ 18 bilhões pela compra do Itaú-Unibanco. E a senhora
está com essas pessoas”. A isso Marina respondeu que os empresários que
respondam, porque ela mesma está acima de coisas tão mesquinhas. Mas
continuemos.
Em outra face do seu
retrato cubista, Marina hoje se declara contra a esquerda, ao mesmo tempo que
se filia à luta da militância no Acre, quando lhe é conveniente. E critica, e
chama de “velha esquerda”, a que se acha dona da verdade, que acha que vai
começar tudo do zero. Na educação, sobre o ensino do criacionismo em escolas,
Marina defendeu uma educação “plural”: “Se você coloca claramente para as
pessoas que existe uma outra visão, a do evolucionismo, não vejo nenhum
demérito nisso”, Mas o evolucionismo não é uma outra visão, para ser posta ao
lado da criação do mundo por Deus. É a diferença entre ciência e crença
medieval.
Disse antes que nos
últimos tempos Marina se transformou num retrato cubista e cometi um pecado.
Cubismo é arte. Ele está há séculos e anos-luz de distância das muitas faces de
Marina Silva, em um só plano. E o plano dela é, o que reúne todas as suas
faces: chegar à presidência da República. Nesse novo retrato dos últimos
tempos, Marina é a encarnação de um amontoado de faces. Da falsa viúva à madona
falsa, mas sempre de cabelos presos e com bastante pudor. Daqueles que a direita brasileira adora.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Estamos aos poucos descobrindo Marina Silva, a ex-coerente.
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