* Por Ronaldo Bressane.
Mercúrio
Qualquer tipo de abstinência fode os miolos, pensei, esguelhando o terceiro envelope largado na minha mesa marroquina. E todos os cretinos – vocês, que zoam dos viciados, e mesmo vocês aí, que até acham que fogem das drogas e não conseguem, os idiotas assépticos que se crêem legais e ajustados, os imbecis superiores senhores do método e da bacaneza fissurados em talkshows e pick-ups e sitcoms e resultados do futebol e modelos de celulares e cartões de afinidade em alguma puta igreja embalados em gravatas e anáguas de cor certa e música adequada, vocês, os que repudiam nos junkies um caráter fraco –, que tentem só uma vez se imaginar sem nome, sem amor, sem país, sem a tal grana, sem nem perspectiva de ressurreição ou fogo eterno: imaginem mortos não só seus nomes como a lembrança desses nomes pra outros, amigos, parentes, amores, que, claro, já devem estar também mortos, mortos, mortos – só que, ao mesmo tempo em que têm esta sensação desmaiando suas hemácias a cada segundo, vocês ainda vivem e gritam, mas desejam por todos os demônios que estivessem comendo grama pela raiz. Esta é a sensação de nostalgia de um desejo que não se preenche nunca – e essa saudade é ela mesma seu prazer.
Hoje, de manhã, pra parar de tremer, me obriguei a um lexotan e um lorax... tá, mandei também uma cibalena. Antes dessa licença médica, alguns colegas jornalistas, ao saber de minha decisão de ficar sozinho por uma semana, me sugeriram um tempo nas montanhas – ganhei uma dica dum lugar cult no sul mineiro, o vale do Matutu, e outra de um bacanésimo retiro tibetano em Itu... Ora vão tomar no cu. Os gente-boa da hora soltaram que até seria interessante tomar sol em Jericoacoara... Uma amiga me convidou pra uma rave que prometia ser ultramegahiperhypada, em Maresias... Puta que pariu, merda!, não entendem, não estou viciado em nenhuma droga em particular: estou viciado é na idéia do vício; eu preciso saber, não tem como driblar dessa curiosidade que me alimenta e me concebe. Pior que isso, percebi que não sou o único: todos estão viciados nisto; meu único problema é que só eu estou – penso que – informado de que vício é este: se eu cobrisse minhas retinas com navalhas, testemunharia afinal tudo em branco, inferno particular, exclusivo universo, o grito do momento, a última estação?
Quando todas as certezas se forem, o que restará deste enviado ao Hades light – uma legenda, uma manchete, um crédito, um boa-noite, um comprimido, um pôr-do-sol, uma receita de bolo, um pentelho entredentes, olhos revirados pra dentro na caça dum desejo sem nome adquirido em doze vezes sem juros? As sirenes da polícia girando ainda por todos os meus labirintos, busco meu pai Pac-Man... é, comi todas as pílulas graais de realidade que me foram ofertadas por estranhos – ao contrário do que mamãe me aconselhava –, um estágio cada vez mais rápido que o outro, labirinto labirinto labirinto, rápida solene deliciosa do dedo médio ao pescoço progressiva a tendinite fustigando 24 horas por dia montada no joystick fuçando o último degrau do jogo, a fuga, olhos em esbugalho num sistema de tiques anfetaminados em que me tornei, eu, o maior parque de diversões de mim mesmo, este esqueleto dançando drum’n’bass titerado por uma fome de consciência fora de controle (fora de controle). Como foi mesmo o sonho?
Tentava tocar no piano da sala uma música nunca antes ouvida – como quem embala no berço um fantasma –: uma música de cabaré. O gigolô. Tinha um gigolô em meu sonho. Eu tocava piano num puteiro e observava uma puta que cantava, pensando em que música tocar pra comer ela de graça. O gigolô espancava a prostituta e lhe tatuava no princípio do rego, na brasa de cigarro, o número 666. Ele me bateu de novo... gemia a prostituta sem nome, pouco antes de me submergir, a ele, o outro eu, entre todas as línguas de sua língua... o supremo tabu quebrado. Eu sonhava como quem vai a um set de filmagem, dirigindo as cenas em que eu mesmo atuava. Ele, digo, eu, me bateu, ela, digo, eu, grogolava. De fora de mim eu nos via, e nosso rosto não era o meu – era um mix de Kurt Cobain com Samuel Beckett. De modo que matei ele, não a mim, mas ao gigolô – que, no fim das contas, era eu mesmo – com minha chave de fenda, a fenda em seu pescoço se abrindo desgarrando cardumes de linotipos: substância mais nojenta que água benta quente... Corri a noite toda, os músculos das pernas embrutecidos, não poderia voltar para minha casa, eu deveria estar atrás de mim, a chave de fenda no bolso provando o delito, não sou dos que deixam a arma do crime no local do crime, embora, no sonho, não soubesse muito bem onde é que tinha matado o gigolô, e já nem me lembrasse mais da prostituta: exaurido de cansaço e angústia, entrei na redação do jornal, onde todos meus colegas me esperavam consternados, apontando-me a manchete da página Cotidiano –
JORNALISTA MATA GIGOLÔ POR AMOR A DOSTOIÉVSKI
Tristes, todos vêm me cumprimentar – você conseguiu, mudou de editoria, pulou do caderno de cultura para as páginas policiais, é uma pena, gemeu a estagiária lambisgóia que eu intencionava lamber, mas pense bem, veio o subeditor, amistoso, você agora vai ter muito tempo para escrever suas memórias do cárcere, quando o diretor de redação chegou com uma piadinha infame, nunca pensei que fosse perder você para a concorrência, olha, é melhor você se apressar, a polícia está logo aí... O que era verdade, as sirenes não mentiam, as sirenes nunca mentem – as sirenes que me despertaram, por exemplo, eram de carros de bombeiro que haviam chegado no meu prédio para investigar um princípio de incêndio que despontava no apartamento 161. Eu moro no 171. (Literalmente).
Não chegou a ser incêndio, mas durou umas duas horas a operação. O sujeito que mora embaixo de mim, um velho advogado alcoólatra, dormiu fumando e o cigarro caiu no lençol. Foi levado pro PS com queimaduras de segundo grau, me disse o porteiro (não agüentei e desci pra ter acesso à notícia in loco, não me perdoaria ser furado debaixo do nariz). Aí lembrei da Clarice Lispector e me deu um puta cagaço, medo de de repente perder meu belo salário de repórter especial e acabar louco e legendeiro de revista de fofoca como ela, e não dormir nunca mais... é, devia ser mais uma armação contra mim. Logo após saber todos os detalhes idiotas do incêndio, subi – tem uma câmera no elevador, é, eu sei – e resolvi estourar vários sacos de pipocas; misturei com a ração pros iguanas, abri outra pepsi 2 litros, despejei meio valium, trouxe tudo pro mezanino, acendi as luzes e cá estou, debaixo da cama, segurando este diário contra o peito. Pânico do fantasma mongol da voz de Clarice vir me puxar os pés. E se meus sonhos fossem reportagens?
Observando minhas veias saltarem desembestadas sob a epiderme, noto que minha pele é tão fina quanto papel: pra quem deixar este diário? Pra quem escrevo? Pra mim mesmo, daqui a uns anos, olhar pra trás e descobrir o quanto sou ridículo? Pra que, afinal, as pessoas escrevem diários, que não seja pra moto-perpetuamente alimentar sua sede por más notícias? Por favor, será que alguém consegue desligar da minha cabeça o narrador off?
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Terceira parte de “Jornal do caos”, conto de Céu de Lúcifer (Azougue Editorial, 2003)
*Escritor, jornalista e editor. Edita a revista V (www.vw.com.br/revistav) e colabora com várias publicações, como Trip, Vogue e TPM. É um dos co-editores da coleção Risco:Ruído, da editora DBA, e do blog coletivo FakerFakir (www.fakerfakir.biz).
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