domingo, 9 de dezembro de 2012

A última noite do mundo

* Por Ray Bradbury

O que é que tu farias se soubesses que esta era a última noite do mundo?
— O que é que eu faria? A sério?
— Sim, a sério.
— Não sei. Nunca pensei nisso.

Ele serviu-se de café. Ao fundo as duas crianças brincavam com blocos sobre o carpete da sala à luz das lanternas verdes. Sentia-se no ar da noite um aroma suave e puro de café de coador.
— Bem, é melhor começares a pensar nisso — disse ele.
— Não estás falando sério?!

Ele fez que sim com a cabeça.
— Uma guerra?

Ele abanou a cabeça.
— Não é a bomba de hidrogênio ou a bomba atômica?
— Não.
— Nem a guerra biológica?
— Não é nada disso — disse ele mexendo o café devagar. — Digamos que é apenas o fechar de um livro.
— Acho que não estou percebendo.
— Não, nem eu, realmente; é apenas uma sensação. Umas vezes mete-me medo, outras vezes não sinto medo nenhum, pelo contrário, sinto-me em paz. Olhou para dentro, para as crianças com os cabelos louros a brilhar à luz das lanternas. — Eu não te disse nada. Aconteceu a primeira vez mais ou menos há quatro noites.
— O quê?
— Um sonho que eu tive. Sonhei que isto tudo iria acabar e uma voz disse-me que sim; não era um tipo qualquer de voz que eu consiga recordar, mas uma voz, de qualquer maneira, que dizia que as coisas iriam acabar aqui na Terra. Não pensei muito no assunto no dia seguinte, mas depois fui para o escritório e apanhei o Stan Willis, a meio da tarde, a olhar pela janela e perguntei-lhe, em que é que estás pensando, Stan, e ele respondeu, tive um sonho a noite passada, e antes de ele me contar o seu sonho eu já sabia qual era. Podia ter-lho dito, mas ele contou-me e eu fiquei ouvindo.
— Era o mesmo sonho?
— Exatamente. Disse ao Stan que também tinha tido aquele sonho e ele não pareceu ficar surpreendido. Ficou até muito calmo. E então, sem uma razão aparente, começamos a andar pelo escritório. Não foi nada planejado. Nós não dissemos «Vamos dar uma volta por aí». Começamos apenas a caminhar espontaneamente, e por toda a parte víamos as pessoas olhando para as secretárias, ou para as mãos, ou pela janela. Falei com alguns, e o Stan também.
— E todos tinham sonhado?
— Todos. Exatamente o mesmo sonho.
— E tu acreditas nisso?
— Acredito. Nunca tive tanta certeza.
— E quando é que ele acaba? O mundo, quero eu dizer.
— Para nós, a qualquer hora durante a noite, e depois, à medida que a noite avança à volta do mundo, aí acabará também. Em vinte e quatro horas tudo estará acabado.

Continuaram sentados por um bocado sem tocar no café. Depois ergueram a chávena lentamente e beberam a olhar um para o outro.
— E nós merecemos isto? — perguntou ela.
— Não se trata de uma questão de merecer ou não; a questão é que as coisas não se resolveram. Eu reparei que tu nem sequer contestaste isto. Por que não?
— Acho que tenho uma razão para isso — disse ela.
— A mesma de toda a gente no escritório.

Ela fez que sim, devagar.
— Eu não quis dizer nada. Aconteceu ontem à noite. E as mulheres no quarteirão falavam entre si sobre isso hoje. Sonharam. Pensei que era apenas uma coincidência — Pegou no jornal da tarde. — Não vem nada no jornal.
— Nem é preciso, toda a gente sabe.

Ele recostou-se na cadeira a observá-la.
— Estás com medo?
— Não. Sempre pensei que viria a ter medo, mas de fato não tenho.
— Onde é que está aquele instinto de sobrevivência de que eles tanto falam?
--- Não sei. Quando as coisas nos parecem lógicas, não ficamos muito excitados. E isto é lógico. Pela maneira como temos vivido, isto não podia deixar de acontecer.
— Não temos sido assim tão maus, ou temos?
— Não, nem muito bons. Acho que o problema é esse — não temos sido muito de nada, a não ser de nós mesmos, enquanto uma grande parte do mundo se atarefava em ser montes de coisas formidáveis.

As crianças riam na sala.
— Sempre imaginei que, numa situação destas, as pessoas desatariam aos gritos no meio da rua.
— Acho que não. As pessoas não gritam por causa do que é real.
— Sabes uma coisa? Não vou sentir a falta de nada a não ser de ti e das crianças. Nunca gostei das cidades, nem do trabalho nem de mais nada, a não ser de vocês os três. Não vou sentir a falta de nada, exceto talvez as mudanças do tempo e um copo de água gelada quando está calor, e talvez sinta a falta de dormir. Como é que podemos estar aqui sentados falando nisto?
— Porque não há mais nada para fazer.
— É isso, claro; porque se houvesse, nós estaríamos fazendo. Creio que é a primeira vez na história do mundo em que toda a gente sabe exatamente o que vai fazer durante a noite.
— Gostava de saber o que é que as outras pessoas vão fazer esta noite, nas próximas horas.
— Vão a um espetáculo, ouvem rádio, vêem televisão, jogam cartas, deitam os filhos e deitam-se elas também, como sempre.
— De certa maneira, isso é uma coisa de que nos devemos orgulhar — como sempre.

Continuaram sentados e ele encheu mais uma chávena de café.
— Por que é que achas que vai ser esta noite?
— Porque sim.
— Por que não noutra noite qualquer, no século passado, ou há cinco séculos, há dez?
— Porque nunca antes, na história, foi o dia 19 de Outubro de 1969, e agora é, sem mais; porque esta data é a mais significativa que jamais houve; porque este é o ano em que as coisas estão como estão em todo o mundo e é por isso que é o fim.
— Esta noite há bombardeiros voando sobre o oceano, nos dois sentidos, cumprindo as suas missões, e que nunca mais vão ver terra.
— Essa é uma das razões disto.
— Bem — disse ele, levantando-se — como é que vai ser? Vamos lavar a louça?

Lavaram a louça e arrumaram-na com especial cuidado. Às oito e meia deitaram as crianças, beijaram-nas ao dar-lhes boas-noites, acenderam os pequenos candeeiros junto das camas e deixaram a porta entreaberta.
— Não sei… — disse o marido ao voltar do quarto olhando para trás, e ficando um bocado ali parado com o cachimbo.
— O quê?
— Se deixe a porta fechada ou entreaberta para deixar entrar um pouco de luz.
— Será que as crianças sabem?
— Não, claro que não.

Ficaram sentados lendo os jornais e conversando, a ouvir música na rádio, e depois foram os dois sentar-se junto da lareira a observar as brasas enquanto o relógio batia as dez e meia, as onze e as onze e meia. Pensaram em todas as outras pessoas do mundo que tinham passado a noite, cada uma à sua maneira.
— Bem — disse ele por fim.

Beijou longamente a mulher.
— De qualquer maneira, fomos bons um para o outro.
— Queres chorar? — perguntou ele.
— Acho que não.

Deram uma volta pela casa apagando as luzes, foram para o quarto e ficaram na escuridão fresca da noite despindo-se e abrindo a cama.
— Os lençóis estão tão limpos e tão bonitos.
— Estou cansado.
— Estamos todos.

Meteram-se na cama e ficaram assim deitados de costas a olhar para cima.
— Um momento — disse ela.

Ele ouviu-a levantar-se e ir à cozinha. Voltou passado pouco tempo.
— Tinha deixado a água correndo na pia — disse ela.

Havia naquilo qualquer coisa de tão insólito que ele não pôde deixar de rir. E ela riu com ele, sabendo bem o que tinha feito de tão insólito. Por fim, pararam de rir e deixaram-se estar naquela cama fria de mãos dadas e cabeças encostadas.
— Boa noite — disse ele pouco depois.
— Boa noite — respondeu ela.

Tradução do texto original com o título The Last Night of the World in THE ILLUSTRATED MAN Flamingo Modern Classic/Harper Collins London, 1995: Luís Varela Pinto

* Escritor norte-americano de contos de ficção científica

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