* Por Marco Albertim
Por certo a loura de feição europeia, a que deu origem à personagem do conto – Ingrid tinha alergia à lama do Capibaribe -, não sabe que o acesso a seu perfil está estampado na capa do livro. Os capistas Luiz Arraes e Pedro Zenival capturaram seu semblante no rosto de uma mulher, sombreado, escuro, bem ao gosto de uma militante clandestina nos tempos da ditadura. À sua frente, um belo rapagão de terno e óculos escuros. Na feição simétrica acentuada pela quadratura dos óculos, o leitor curioso dará conta do parceiro de ideias – de Ingrid -, bem como de um tira jeitoso, no afã de prender mulheres da sua idade. No fundo, policiais fardados, atiçados pela histeria fascista de cal ar a boca de moços indóceis.
Ingrid, a real, era tão falaz quanto sonhadora; não era enganadora, mas falava como um camelô zeloso da sintaxe. Sua voz deslizava por todo o corpo, como para encobrir as pernas queimadas pelo ácido, jogado pelo Comando de Caça aos Comunistas, então encravado na Faculdade Mackenzie em São Paulo. Levada ao hospital, desconfiou da suspeita do médico, de que não mais voltaria a andar. Reagiu sem perder a inflexão da prosa, dizendo:
- Sem pernas também se luta.
Provou que voltaria a andar, fugindo do hospital, escapando da mira da polícia. A ardência nas pernas acentuou-lhe o ardor das ideias. Chegou ao Recife em 1968, ano fértil, generoso para os estudantes em passeata na Avenida Guararapes; fértil e farto de cassetetes. Podia usar calças compridas para despistar a polícia; não as tinha. A pressa da fuga não lhe deixara outra escolha. Contentou-se nos vestidos com dois dedos acima dos joelhos. Para admiração nossa, e regalo de nossos olhos urdindo cada diâmetro de suas coxas. Numa noite, num sítio nos arredores de Igarassu, reunimo-nos. A casa de Raquel, a que nos propiciou o retiro, tinha o benefício de uma fresca fluvial. Descemos por um declive ao lado da casa, e nos sentamos sob um cajazeiro distante três metros do córreg o ruidoso. Sentamos e nos convencemos de que o marulho das águas era um rebento de ideias.
Tínhamos um ar meio que distraído no matagal acolhedor. Convém a essa altura dizer os nomes: Alfredo Lopes, tão inquieto quanto os óculos caindo na ponta do nariz; Luci Siqueira, a pequena com voz de veludo, de passos curtos e ininterruptos; Urariano Mota, o mesmo de Soledad no Recife, dispusera-se a ficar de tocaia, caso a polícia metesse o bedelho. Ele aproveitou para dar curso a sua veia de escritor, rabiscando no caderno de notas. Ingenuidade generosa, mesmo com o risco de ser preso com anotações sobre o perfil de cada um de nós.
O vento soprou e misturou-se à voz de Ingrid:
- Li O Capital em uma semana. Perguntem se eu entendi!
Não perguntamos, fruímos o feito babando no canto dos lábios a performance de que nos julgávamos incapazes.
Dali, escolheríamos quem iria para o congresso da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Ingrid, matreira, convencera antes da reunião, de que Alfredo Lopes seria o delegado, como chamávamos. Na votação, o escolhido fui eu...!. Gostei, inda que me sentindo caloteiro da graça dos ensinamentos de Ingrid.
À noite, depois da canja de galinha preparada por Raquel, resolvemos conversar nos fundos da casa. Uma luz mortiça, zunindo na cumeeira, era o registro de nosso gozo revolucionário. Não queríamos dormir, visto que escassas eram as chances que tínhamos de nos juntar em Recife. Noitinha, e ouvimos a voz de Ingrid, vinda do quarto onde ela dormia – “Silêncio!” Não era conosco, era com os duendes clandestinos, seus interlocutores no sono. A trama do sono não impediu que ela, meia hora depois da sentença, viesse nos advertir da inconveniência de permanecer do lado de fora àquela hora. O bulício seria estranhado pela vizinhança. Mantendo o perfil rocambolesco, ela se levantara enrolada no lençol de morim, pouco atenta à transparência do pano. Foi como se descobríssem os os pormenores de Rosa Luxemburgo.
De volta para o Recife, no ônibus, ela tirou o dinheiro da passagem, de sua bolsa. Sem que notasse, a nota saiu junto a uma cueca. Não teve dúvidas e confessou:
- A cueca do meu marido ficou na minha bolsa! – para espanto do cobrador
A derradeira vez que a vi, deu-se numa praça em Salvador. Abraçamo-nos. Eu, sem acreditar em adeuses, gritei seu nome quando ela sumiu na esquina. Ela não olhou para trás, partiu para remoçar-se na luta de classes.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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