terça-feira, 19 de maio de 2009




A difícil arte de ser borboleta

* Risomar Fasanaro

Os cabelos grisalhos denunciavam que ela estaria com mais de sessenta anos. Sentada sozinha em um café no shopping, saboreava uma banana split. Era o que sempre fazia quando precisava pensar. Uma espécie de ritual que a ajudava a digerir a vida, de forma doce e suave.

As lojas estavam repletas de pessoas. Por certo as que ainda não tinham comprado os presentes do dia das Mães o faziam agora, às vésperas do dia.

Pensava na vida quando viu uma garota de doze anos passar com uma mini-blusa super decotada e um shortinho. A garota desfilava muito à vontade com seu corpinho bonito a anunciar a moça que surgia.

A mulher começou a pensar no quanto o mundo havia mudado. Em como hoje as meninas se tornam adultas muitas vezes antes do tempo. E como era bom perceber que elas não se sentem acanhadas ao exibir o corpo. Coisa que antes era motivo de crise.

Rememorou o início de sua adolescência. O que mais queria era ter dezoito anos. Quando a mãe saía de casa, ia remexer no guarda-roupa dela. Escolhia os vestidos mais bonitos, e vestia um por um. Calçava os sapatos de salto alto, passava batom e blush e ficava a se mirar no espelho com o vestido que ia até os pés. Soltava as tranças e parecia uma moça.

Fosse ao cinema vestida daquele jeito, e era capaz de o porteiro deixá-la entrar para ver o “Sindicato de ladrões”, proibido para os menores de dezoito anos.

Quando a mãe chegava, notava o estrago que ela havia feito. As barras dos vestidos sujas de se arrastarem no chão, os saltos dos sapatos amolecidos. Lá vinha a bronca e o castigo: levava uns beliscões, e ia dormir chorando, para aprender a não mexer no que além de não lhe pertencer, não era apropriado à sua idade.

Na cama, imaginava-se morta. Mortinha no caixão, com seu vestido branco de fustão e a mãe chorando, desesperada por perder sua filhinha querida. Querida nada. Se a mãe gostasse dela deixava que mexesse em tudo no guarda-roupa. Aquela era sua vingança: morrer pra que a mãe ficasse cheia de remorsos. Se é que iria chorar. Vai ver nem filha de verdade ela era. Vai ver era filha de criação. A mãe não tinha mania de criar os filhos dos outros, os meninos abandonados? Vai ver ela era um deles.

Queria que o tempo passasse, que os relógios acelerassem para ela ter logo dezoito anos e cuidar de sua vida. Comer chocolates e chupar confeitos o quanto quisesse. E ver os filmes proibidos. Todos. Aqueles filmes franceses que a mãe e o pai iam ver nos cinemas da capital.

No cinema do bairro só passavam aqueles filmes de americanos e índios brigando e se matando. A única coisa que prestava era os filmes de Tarzan. Os seriados uma vez por semana. Mas eles sempre acabavam no melhor, com Tarzan correndo risco de vida, e ela voltando pra casa sem saber como ele sairia daquela enrascada.

Mas ainda que lentamente, as brincadeiras na rua, os patins, as pescarias no rio tomaram seu tempo sem que percebesse; e um dia notou que seu corpo começava a mudar. Os vestidos costurados pela mãe já não caiam sobre seu corpo de tábua como antes, os seios tão pequenos que mais pareciam pequenos botões de rosa a desabrocharem, começavam a apontar para o céu.

A princípio sentiu-se feliz, enfim começava a crescer, a tornar-se adulta. Marlete, a moça que trabalhava em sua casa a elogiava: que vestido bonito! Mas talvez nem ela percebesse onde estava a razão daquela beleza nascente. Era a presença dos seios que cresciam e, agora, em vez de fazê-la feliz, provocavam um desconforto, uma timidez, uma vergonha diante dos meninos, dos professores, e principalmente na rua, quando se sentia olhada. Era como se nada mais houvesse nela além daqueles seios. Como se andasse nua pelas ruas, à mercê dos olhares. Olhares que muitas vezes, a despiam..

Voltava do colégio com os cadernos colados ao corpo, assim ninguém perceberia que se transformava em uma mocinha. Mas não era aquilo que ela queria? Não era o corpo, o rosto, os cabelos de moça? Teria coragem um dia para usar batom, esmalte, pulseiras, brincos? Não, achava que não. Tão enfeitada, chamaria a atenção das pessoas. E ela que já suava frio três pontos antes de descer do ônibus, não teria coragem de enfrentar aquilo.

Meu Deus!...Era um preço muito alto. Ela não conseguiria sobreviver àqueles olhares. Um dia choveu na saída da escola. Ela e as amigas corriam e riam. A chuva engrossou e a blusa branca, impecavelmente branca, colou-se ao corpo, desenhando os seios. Até Deus estava contra ela? Antes era possível esconder os vestidos da mãe antes que ela voltasse, mas...e agora? Como esconder o que fazia parte dela, do seu corpo?

Chegava do colégio e ia correndo para o quarto estudar. A mãe chamava e ela dava um jeito de só ir depois que os irmãos já haviam saído, quando quase ninguém havia na cozinha, além da mãe e de Marlete. Mas a mãe foi a primeira a tocar no assunto que ela, estrategicamente, vinha fugindo a todo custo. Sempre que percebia que ela iria falar sobre aquilo, dava um jeito de mudar o rumo da conversa.

Mas um dia não foi possível fugir. A mãe chegou de forma clara e objetiva: “você precisa usar soutien”.

Fez que não ouviu, abaixou a cabeça e continuou comendo. A mãe repetiu:
-Você ouviu? Precisa usar soutien. Fica muito feio você sair por aí com esses seios aparecendo sob o vestido. Uma moça precisa usar soutien.
-Mas eu ainda não sou moça...
-Moça ou não, não dá mais pra você andar assim. Isso fica indecente.

Ainda tentou argumentar:
-Mas com soutien eles ficam maiores, e tenho vergonha de o soutien aparecer embaixo da blusa...Não mamãe, eu não quero.
- Mas precisa.
-Preciso não.

Usar soutien era admitir que os seios existiam. Estavam ali, à vista de todos, e já começava a incomodar as pessoas. Até a mãe se sentia incomodada. Foi para o quarto e não quis mais comer. Ela era horrível, um monstro. Uma garota magrela, desajeitada, e com seios imensos, descomunais. Tão grandes que precisava usar soutien...

Queria tanto crescer, tornar-se adulta, mas não havia pensado em tudo que a idade traz de desagradável. E ela, a crisálida que tanto queria se tornar borboleta, nunca pensou no peso que aquelas asas coloridas lhe trariam. Soubesse e teria preferido ser sempre crisálida.

A mãe foi até o quarto dela e conversou:
-Um dia você vai se sentir feliz quando se olhar no espelho. Vai ver como os vestidos ficam bonitos com um pouco de decote. Os rapazes vão olhar pra você e vão achá-la bonita. Vão querer namorá-la.

Ficou o resto do dia pensando. Será? Será que usando soutien, Marcelo a notaria? Será que não tampando os seios com o fichário, ele se interessaria por ela?

Dias depois a mãe chegou com um pacotinho e colocou-o em cima da mesa, ao lado do prato do almoço. Ela engoliu em seco e não disse nada. A mãe perguntou: não vai abrir?

Ela pegou o embrulho, levantou-se correndo e foi para o quarto. Deitou-se sem tirar o uniforme. Abriu o pacote e encontrou um soutien branco, De Millus n° 40. Tirou a blusa, vestiu-o e olhou-se no espelho. Depois colocou a blusa e viu o quanto aquela pequena peça a ajudava a esconder sua timidez. Abraçou-se a ele e chorou a tarde toda a morte de sua infância.

A mulher levou à boca uma colher de sorvete, com um pouco de chantilly e sorriu ao imaginar qual seria a reação daquela garota se ela lhe contasse o que sentiu naquele dia...

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.

5 comentários:

  1. Risomar, seu conto é de uma sensibilidade ímpar, me fez lembrar da época em que as asas tornaram-se uma responsabilidade... ótimo! Abraços!

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  2. Nossa, que texto lindo, Risomar. Eu, na minha dureza de homem, de macho, de insensível, fiquei com os olhos marejados. 20 beijos com sabor de juventude eterna.

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  3. Sayonara e Fabio

    Obrigada pelas palavras! De repente me dei conta de que muitas mães hoje estão fazendo com que as meninas virem clones de apresentadoras de tv, de dançarinas dos diferentes ritmos musicais do país, sem perceber que estão "queimando" etapas da vida das filhas e ao mesmo tempo expondo-as em "vitrines" que poderão (até!!!) torná-las alvo de pedófilos...Exagero meu? Talvez.
    Gostaria que um dos homens do nosso Blog escrevesse sobre o que é passar da infância à adolescência, da adolescência à juventude. Porque só quem passa ou passou por isso sabe como é. Pra mim os homens são sempre um mistério insondável. O que vocês acham disso?
    20 beijos em cada um

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  4. A história do primeiro soutien não é apenas peça publicitária, é a pura verdade. O meu também era De Millus, branco, rendado, com uma fitinha azul clara, e acolchoado. A minha mãe não foi tão sensível quanto a mãe da história, pois obrigou-me, com os seios já nascidos, juntar moedas até completar o montante de um bom soutien. Muito doce e suave as reminescências dessa senhora, que bem pode ser você ou qualquer uma de nós.

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  5. Mais uma vez, adorei seu texto.Presente e passado se confrontando no mesmo tempo e espaço.
    Parabéns!
    Um grande abraço.

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