segunda-feira, 25 de maio de 2009




Ah, o maldito cálice da insanidade

* Por Eduardo Murta

Os tipos da máquina de escrever manual, tinta preta, remetem para logo ali, as primeiras franjas dos anos 1960. E vão se sobrepondo em velocidade de contentamento ao longo do papel amarelado. Tricotam desfecho feliz. Mal sabe Amador o enredo de tragédia que se erguerá na esteira daqueles textos. Ponto final, revisão minuciosa, e os originais seguiriam ao editor que lhe prometera uma chance.

Viriam seis noites sem dormir – o relógio desnudando todos seus segredos – e o chamado às pressas ao posto telefônico. Era fim de tarde, e lhe acharam ajeitando os filós antipernilongos. Largou tudo por armar e chegou esbaforido ao bocal do aparelho. Pronunciou um alô tuberculoso, que na outra ponta julgavam falar com um cadáver.

A cada frase, as pernas lhe bambeavam. Chorava, lembrando um menino, porque iriam publicar seu romance. Aos 40 anos, contabiliza ao menos 35 lustrando o sonho de um dia poder falar ao mundo pelas letras. Produzira 243 páginas datilografadas, em 12 capítulos. Um crítico talvez enxergasse temperos de Kafka em seu estilo.

Foi com zelo de quem põe um filho para adormecer que organizou o volume no envelope pardo e foi ao ponto da estrada em que, três em três dias, o ônibus se anunciava no poeirão. Subiu, deu recomendação expressa, repetiu, reiterou, sublinhou. Que fosse entregue ao agente dos correios na rodoviária da capital. Uma semana e meia de angústia, e brindou ao recebimento da encomenda.

Logo pôde fazer planos. O dezembro dali a quatro meses, e teria livro com nome, assinatura de autor e capa vitrines afora. Começou a gastar por conta, ao sinal de que o primeiro cheque aportaria em breve. Bebidas, mulheres, a sorte no carteado, um anel a Jurema, um colar a Isaura. Foi que veio novembro e a comunicação, súbito, se partiu.

Sobreveio um silêncio longo, asfixiante. Roera tanto as unhas que o sangue se avizinhava. Aportou no posto telefônico e só saiu horas depois, completada a ligação. Em meio à chuva de ruídos, o choque: o editor adoecera, causa grave. Mandasse rezar missa, aviar promessa. Duas semanas mais, e viria o pior. Morrera.

Rumou à metrópole, desembestado. Contava os minutos. Não pensava mais em livro, mas em resgatar as 243 páginas em papel encardido, de cujos originais não fizera cópias. Burro maldito!!! Se punha em descompasso à simples hipótese de terem extraviado com o espólio do morto. A secretária gaguejou, relutou, fez rodeios, e sob uma atmosfera que já se punha doente, terminou por contar a Amador o resumo trágico.

Como pedira em testamento, o sujeito fora sepultado com todo seu acervo literário – de Machado de Assis aos inéditos. Ao assombro da revelação, baixou no cemitério. Enxada e pá operando, ele era uma silhueta mórbida àquele contraluz de fim de tarde. Os jornais da época contam mais sobre o episódio. Do homem tresloucado, preso como profanador de túmulos, uivando ao delegado, sem ser compreendido, que ali estava enterrada sua história.

E, do manicômio – lá se vão sete anos –, descrevem que ainda hoje rabisca às paredes, jurando que reescreve um romance. Passou das 200 páginas. E morrerá de novo, quando revelarem que o pavilhão tem data próxima para ser demolido. Desconjuntando palavra por palavra. Pondo abaixo sentidos. Embriagando sonhos no maldito cálice da insanidade.

* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa. É secretário de Redação do jornal Hoje em Dia, diário de Belo Horizonte. Já teve passagens também pelos jornais Diário de Minas e Estado de Minas, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas do Hoje em Dia (www.hojeemdia.com.br), onde publica às quartas-feiras.

5 comentários:

  1. Credo em cruz! Que Kafka que nada! Poe, isso sim! De quebra, a lição: temos de estar em paz com o cadáver que carregamos, senão ele nos puxa pelo pé e resulta, mais que um tombo, o impasse da criação, a impossibilidade do desfecho - mal de que vc, caro Murta, não sofre, pq sempre conclui de maneira primorosa, como nesta crônica. Parabéns.

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  2. Os cadáveres, às vezes, é que nos inspiram com seus silêncios, caro Daniel.

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  3. Torrencial esta história. Acelerada nos acontecimentos e na insanidade do escritor. Apostar todas as fichas num empreendimento só, de tantos anos, é o mesmo que colocar todos os ovos num só cesto. No final ficou de mãos abanando, sem livro e sem história, pois a loucura engoliu seu principal personagem: ele mesmo.

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  4. Que texto bárbaro! Aqui se tem o argumento para um livro, para uma peça, para um filme...! E como disse agora pouco sobre o texto da Celamar: a loucura me fascina! Embora aqui, creio, os loucos sejam os outros. Mas, onde não é?! Parabéns pelo texto, Murta. Um abraço.

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  5. Eduardo

    Que historia!...Digna de um Kafka! Vibrei com este texto tão bem construido. Por que você não o transforma em um romance?Digna de um romancista.Parabéns! Pra quem escreve, é um texto de arrepiar...
    Abraços

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