quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Brilho perene - Pedro J. Bondaczuk


Brilho perene


* Por Pedro J. Bondaczuk


Há poetas tão bons, tão profundos, de brilho tão intenso, que o tempo não consegue ofuscar e, pelo contrário, o realça ainda mais, como uma estrela radiosa que permanece por milhões de anos encantando algum eventual observador. Claro que há escritores de outros gêneros que também encantam e se perpetuam na memória de gerações. Citei, especificamente, os que lidam com poesia dada a maior dificuldade de se impor ao grande público. Há, ainda, muita resistência dos leitores em comprar livros do gênero e das editoras em publicá-los.

Um desses poetas notáveis, que entra ano, sai ano, conserva (se não amplia) o seu prestígio, é Rainer Maria Rilke. Quase tudo o que se refere a ele é, digamos, exótico, original, diferente, que chama a atenção pelo inusitado. Vamos a alguns exemplos? Começo com sua nacionalidade. Ele nasceu em Praga, em 4 de dezembro de 1875. Bem, diante disso, todos dirão, certamente, que se trata de um checo, certo? Errado! Ocorre que essa cidade, e todo o território da atual República Checa, integravam, na época, o Império Austro-Húngaro. Até hoje, portanto, seus biógrafos, e todas as enciclopédias, caracterizam Rilke como de nacionalidade austríaca.

Outro aspecto inusitado refere-se ao seu prenome. Ele foi registrado como René. Todavia, mudou-o, já maduro, para Rainer. A terceira peculiaridade refere-se ao idioma em que produziu sua vasta, memorável e belíssima obra poética. Ele é tido e havido, com toda a justiça, como um dos melhores escritores de língua germânica de todos os tempos, ombreando-se a Johann Wolfgang Von Goethe. Todavia, muitos dos seus mais expressivos poemas foram escritos em francês. Há outras tantas peculiaridades em torno da sua figura, no entanto, as que citei já bastam para o que quero dizer.

Entrei em contato com a poesia de Rilke na adolescência e, encantei-me de tal forma com ela, que até hoje está entre as minhas favoritas. Aliás, ao amante da boa poesia, é difícil, se não impossível, não gostar desse poeta. Nos círculos literários que frequento, não há um único escritor que não o aprecie. Para não gostar dele, só mesmo tendo um péssimo gosto, ou não apreciar a poesia como gênero literário nobre ou nunca ter lido nada de Rilke. Neste último caso, enquadram-se os néscios e arrogantes, os tais que afirmam, como se se tratasse de algo meritório: “não li e não gostei”. Desses quero distância!

A enciclopédia eletrônica Wikipédia define da seguinte maneira suas principais características literárias: “ sua obra é original, marcada pelo tratamento da forma e pelas imagens inesperadas. Celebra a união transcendental do mundo e do homem, numa espécie de ‘espaço cósmico interior’”. Concordo com essa descrição, que considero bastante fiel

Além de três dos seus livros, tenho centenas de poemas esparsos, transcritos de revistas literárias internacionais, todos digitados e gravados na memória do meu computador, para o meu deleite. Não passa uma única semana sem que eu leia algum (geralmente vários) deles. É um poeta, sobretudo, inspirador.

Destaco que Rainer Maria Rilke morreu muitos, mas muitos mesmo, anos antes de eu nascer, em 29 de dezembro de 1926, na cidade suíça de Valmont. Seus poemas, todavia, mantêm a atualidade temática e também a formal como se houvessem sido compostos, digamos, na manhã de hoje. Conheço poucos que conseguem essa façanha.

Nos seus 51 prolíficos anos de vida – morreu bastante jovem para os padrões atuais – legou-nos dez livros, vários deles relançados, volta e meia, quer na Europa, quer nos Estados Unidos ou no Brasil. E eles são os seguintes: “Vida e canções” (1894), “Geldbaum” (1901), “O livro das imagens” (1902), “O livro das horas” (1905), “Novos poemas” (1907), “A vida de Maria” (1913), “Os cadernos de Malte Laurids Brigge” (1910), “Elegias de Duino” (1923), “Sonetos a Orfeu” (1923) e “Cartas a um jovem poeta” (publicado postumamente em 1929). Oportunamente, tratarei de cada um deles, separadamente.

Por hoje, todavia, separei os três poemas abaixo, com excelente tradução do também brilhante poeta Augusto de Campos, para que quem tem “intimidade” com Rilke, se delicie com a sua inspiração e, quem não tem, tome conhecimento da sua obra e se interesse em pesquisar outras entre suas magníficas produções.

A Solidão

A solidão é como chuva.

Sobe do mar nas tardes em declínio;
das planícies perdidas na saudade
ele se eleva ao céu, que é seu domínio,
para cair do céu sobre a cidade.

Goteja na hora dúbia quando os becos
anseiam longamente pela aurora,
quando os amantes se abandonam tristes
com a desilusão que a carne chora;
quando os homens, seus ódios sufocando,
num mesmo leito vão deitar-se: é quando
a solidão como os rios vai passando...


O anjo

Com um mover de fonte ele descarta
tudo o que obriga, tudo o que coarta,
pois em seu coração, quando ela o adentra,
a eterna Vinda os círculos concentra.

O céu com muitas formas lhe aparece
e cada qual demanda; vem, conhece ---
não dês às suas mãos ligeiras nem
um só fardo; pois ele, à noite, vem

à tua casa conferir teu peso,
cheio de ira, e com a mão mais dura,
como se fosses sua criatura,
te arranca do teu molde com desprezo.


L’ange du meridièn

Na tormenta que ronda a catedral
como um contestador que o seu juízo
mói e remói, é um bálsamo, afinal
ser-se atraído pelo teu sorriso:

anjo ridente, amável monumento,
com uma boca de cem bocas: não
te ocorre vislumbrar por um momento
o quanto as nossas horas já se vão

do teu relógio, onde a soma do dia
é sempre igual, em nítida harmonia,
como se as nossas horas fossem plenas.

Pétreo, como saber das nossas penas?
Acaso teu sorriso é mais risonho
à noite, quando expõe a pedra em sonho?


* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance Fatal” (contos), “Cronos & Narciso” (crônicas), “Antologia” – maio de 1991 a maio de 1996. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 49 (edição comemorativa do 40º aniversário), página 74 e “Antologia” – maio de 1996 a maio de 2001. Publicações da Academia Campinense de Letras nº 53, página 54. Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk

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