domingo, 23 de setembro de 2018

Interseção de tempos desiguais - Anna Lee


Interseção de tempos desiguais


* Por Anna Lee


Estamos em 1980. Festival de Veneza. Glauber Rocha se prepara para o que será seu último combate: lança A Idade da Terra –– o filme que acreditava ser uma revolução no Cinema Novo e que assim descreveu: “Um filme brasileiro de Glauber Rocha. Um filme latino-americano, um filme também universal. Não vou explicar nada, eu quero que se veja e que se ouça. O filme tem um som revolucionário, uma novidade muito grande. Um filme audiovisual, infelizmente, não é um filme de enredo, clássico, convencional. Este é um filme de imagens e sons. Não é um filme de palavras porque isso é teatro, não é cinema”.

A tensão é muito grande. À medida que o A Idade da Terra vai sendo projetado, as pessoas começam a sair. Primeiro discretamente para passarem despercebidas. No meio delas, inclusive, alguns fãs de Glauber se levantam e se retiram. Quando termina a exibição, a sala está vazia.

Fora alguns franceses, os críticos tiveram uma reação pouco favorável. “Ninguém entendia direito a proposta de A Idade da Terra e o problema era que a maioria das pessoas não estava prestando atenção no filme, mas na figura do cineasta brasileiro, cada vez mais exaltado”, afirmou o jornalista Pedro Del Picchia, que assistiu à projeção.

No fim do festival, quando premiaram o francês Louis Malle, Glauber promoveu um evento inusitado: fez uma passeata pelo Lido de Veneza, enquanto discursava contra o “imperialismo cultural que abafava nossas raízes, a nossa potencialidade”. Exasperado, ele não cansava de repetir: “Meu estilo de filmar está profundamente ligado à cultura popular brasileira, ao que são considerados símbolos e alegorias; não são abstrações, mas são expressões diretas da cultura popular. É um cinema feito sobre o povo e com a colaboração cultural do povo, que expressa os mitos mais profundos do povo americano, que são herdados da cultura negra, da cultura índia, pela moral do povo, que não é a moral burguesa, pela psicologia do povo, que não é a psicologia burguesa, pela imaginação visual, pela arquitetura, pelos trajes”.

Glauber morreu pouco tempo depois.

Agora, estamos em Paris, numa sala da Sorbonne. É 1933.

O psicanalista René Allendy e Antonin Artaud estão sentados atrás de uma grande mesa. Allendy apresenta Artaud. A sala está repleta. A cena forma um estranho pano de fundo. Gente de todas as idades. O público das palestras de Allendy sobre as Novas Idéias.

A luz é crua e mergulha na escuridão os olhos fundos de Artaud. Isso acentua ainda mais seus gestos. Ele parece atormentado. Seus cabelos longos às vezes caem sobre a testa. Ele tem a leveza e a vivacidade do ator. Um rosto magro como devastado pela febre. Um olhar que não parece enxergar o público. Um olhar de visionário. Mãos longas com longos dedos.

Ao lado, Allendy parece prosaico, pesado, cinzento. Está sentado atrás da mesa, maciço, concentrado. Artaud sobe no estrado e começa a falar: O Teatro e a Peste.

Ele pedira à amiga Anaïs Nin que se sentasse na primeira fileira. Ele dá impressão de querer apenas a intensidade, uma maneira elevada de sentir e viver. Então, põe-se a representar alguém morrendo de peste. Para ilustrar sua conferência, representa uma agonia. Artaud esqueceu a conferência, o teatro, suas idéias, O Dr. Allendy, a seu lado, o público, os jovens estudantes, a mulher de Allendy, os professores e os diretores de teatro. Seu rosto está convulsionado de angústias e seus cabelos, empapados de suor. Faz com que todos sintam sua garganta seca e queimando, o sofrimento, a febre, o fogo de suas entranhas.

As pessoas primeiro perdem o fôlego. Depois começam a rir. Todos riem! Assobiam. Depois, retiram-se ruidosamente, falando alto, protestando. Batem a porta ao sair. Os únicos que não se mexem são Allendy, sua mulher, os Lalou, Margueritte. Mais protestos. Mas Artaud continua. Está na tortura. Uiva. Delira. Representa sua própria morte. E fica lá, por terra.
*

E eu aqui, no Rio de Janeiro, em 2007, tento promover um encontro imaginário entre Glauber e Artaud, apostando na possibilidade de renascimento de um e de outro e na interseção de tempos desiguais.

*Jornalista, mestranda em Literatura Brasileira, autora, com Carlos Heitor Cony, de "O Beijo da Morte"/Objetiva, ganhador do Prêmio Jabuti/2004, entre outros livros. Colunista da Flash, trabalhou na Folha de S. Paulo e nas revistas Quem/Ed.Globo e Manchete.


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